sábado, 6 de agosto de 2016

Manifesto Autogestionário: um plágio criativo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels

Resenha: VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008 

Manifesto Autogestionário: um plágio criativo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels

Lucas Maia Dos Santos∗ 

160 anos separam o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels do Manifesto Autogestionário de Nildo Viana. O manifesto dos autores alemães é sem sombra de dúvidas um pequeno texto que vale por obras inteiras. O texto de Nildo Viana é um plágio do velho manifesto ou como o autor mesmo diz: “é um plágio de um plágio”, pois Marx e Engels são acusados de plagiarem o Manifesto da Democracia de Victor Considerant. Marx e Engels teriam plagiado Considerant? Nildo Viana afirma peremptoriamente que não, pois embora haja algumas semelhanças formais em ambos os textos, as teses defendidas no Manifesto do Partido Comunista não se encontram no Manifesto da Democracia. 

Os prefácios feitos por Marx e Engels às sucessivas edições do Manifesto do Partido Comunista demonstram uma preocupação dos autores em ressaltar que as teses ali expostas não são um catecismo que deva ser seguido ad eternum. O revolucionário que de fato queira compreender o processo histórico e de alguma maneira contribuir com a transformação social, deve cotidianamente preocupar-se em analisar concretamente as condições históricas dadas. Não basta apreender um conjunto de postulados e aplicá-los indefinidamente em qualquer situação e contexto histórico. Não há nada mais idealista que tal procedimento. 

O Manifesto da Liga dos Comunistas de 1848 é a expressão mais clara de uma nova concepção da história, que considera os processos reais analisados de uma maneira concreta, ou seja, que ambiciona encontrar as múltiplas determinações que explicam a realidade. Marx e Engels demonstraram que a alavanca da história é a luta de classes. A luta entre senhores de escravos e escravos no modo de produção escravista da antiguidade, a luta secular entre senhores feudais e servos no modo de produção feudal e por último, a dramática guerra civil, ora oculta ora declarada, entre burgueses e proletários trouxeram a humanidade aos nossos dias. 

O que o Manifesto do Partido Comunista representa é justamente um programa prático que expressa uma concepção revolucionária. Neste texto está contido a concepção do desenvolvimento histórico entendida de um ponto de vista materialista, a relação dos comunistas com a classe operária e a posição dos comunistas diante das demais tendências oposicionistas e da literatura socialista existente até aquele período. Para demonstrar como entendem o processo histórico, afirmam: “A história de toda sociedade até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Isto coloca o proletariado na pauta das discussões, pois sendo ele produto genuíno desta sociedade, a ele também cabe o papel histórico de abolição das relações sociais existentes. É com base nisto que afirmam que o papel dos comunistas não é o de dirigir a classe operária rumo à revolução, pois segundo entendem, os comunistas não ∗ Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Goiás e professor da rede municipal de ensino de Goiânia. são um partido a parte, separado da classe operária, são simplesmente a fração mais resoluta do proletariado. Apresentam em relação a este a vantagem de terem consciência dos fins da luta ao passo que os proletários em geral só adquirem consciência destes fins durante o processo de luta e principalmente nos momentos mais radicais desta verdadeira guerra civil – a luta de classes. É por esta razão que terminam o texto com a célebre frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”! 

Se em linhas gerais, o Manifesto de 1848 continua atualíssimo, pois a sociedade capitalista ainda merece ser destruída, pois o proletariado ainda é o verdadeiro sujeito da revolução, pois os comunistas continuam a existir etc., não é menos verdade que a sociedade transformou-se consideravelmente de lá para cá. Sendo, portanto, coerente com os princípios do materialismo histórico, nada mais adequado do que realizar uma atualização deste manifesto. 

O materialismo histórico-dialético é um método vivo, posto que expressão concreta do movimento do mundo. Aplicando-o ao estudo de realidades concretas, produzimos interpretações teóricas destas realidades. Uma teoria é um conjunto de conceitos e categorias articulados num processo coerente de explicação da realidade. A teoria visa explicar. Sendo expressão explicativa do mundo, ela ajuda a contribuir com o processo de transformação e também permite clarear melhor as nuances do processo revolucionário, sendo importante arma no combate à contra-revolução (seja ela burocrática ou burguesa). Esta teoria deve ser constantemente submetida à análise e reanálise, deve estar sempre com os olhos voltados para o mundo, deve sempre explicá-lo. Se assim não o for, torna-se ideologia, ou seja, uma visão invertida da realidade, uma falsa consciência. 

O marxismo, de teoria revolucionária, tornou-se durante o século 20 um conjunto de ideologias tão díspares e ao mesmo tempo tão distantes do marxismo que a utilização deste termo para qualificá-lo enquanto tal ficou bastante problemática. Foi o que o que ocorreu com a social democracia, com o leninismo e todas as suas variações (stalinismo, trotskismo, maoísmo etc.), com a fusão do “marxismo” com ideologias científicas (estruturalismo, fenomenologia etc.) dentre outras possibilidades de deformação. Por isto, a teoria revolucionária, ou seja, o marxismo, deve explicar o mundo e por causa disto deve ser a crítica radical de toda e qualquer ideologia já existente ou que venha a ser produzida. 

Por isto, Nildo Viana se coloca nesta difícil e ao mesmo tempo instigante tarefa de “atualizar” o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. O desafio já começa com a preocupação terminológica. O termo comunismo se prestou a tantas barbáries e tantas confusões na longa história das lutas operárias do século 20 que de um conceito que visava e expressava o processo revolucionário, tornou-se um grande monstro que justificava as mais gigantescas burocracias (União Soviética, China, Cuba etc.). Tornou-se um conceito que estava articulado a uma ideologia que utilizava uma fraseologia “marxista”, mas que na verdade era somente uma forma de dominação da burocracia. A disseminação da idéia de comunismo como vinculada aos partidos bolcheviques presta-se à edificação de grandes confusões: onde antes tinha-se revolução, agora tem-se contra-revolução burocrática, onde antes tinha-se um “sonhar para frente”, para utilizar expressão de Ernst Bloch, agora tem-se um eterno retorno das sombras do passado. Assim, o Manifesto do Partido Comunista torna-se no seu plágio contemporâneo o Manifesto Autogestionário. Mata-se dois coelhos com uma cajadada só: abandona-se o uso da confusa expressão “comunismo” e da palavra “partido”. Embora Marx e Engels desse um sentido diferente à palavra partido, ou seja, aqueles que tomam partido, que tomam parte, que se posicionam como comunistas, com o desenvolvimento das burocracias partidárias e da “democracia burguesa” torna-se um termo que presta-se à confusão e não à explicação. 

Formalmente, o Manifesto Autogestionário segue a mesma lógica do Manifesto do Partido Comunista. Apresenta, na seção 1, a luta entre burgueses e proletários, denominando-a de “A burguesia e o proletariado: a dinâmica da luta entre trabalho morto e trabalho vivo”. Esta é a parte mais difícil de ser atualizada, pois trata da essência do modo de produção capitalista. Por esta razão, as modificações que sofreu são mais formais e conjunturais. A preocupação centra-se então em precisão terminológica. A burguesia, fulcro dominante da exploração capitalista representa o trabalho morto, fruto da exploração, merecendo, portanto, ser sumariamente abolida enquanto classe. O proletariado, por sua vez é o trabalho vivo, o centro da criação e da criatividade. Por este motivo, a ele cabe a difícil tarefa de destruir o capitalismo e construir a autogestão social. 

Na seção 2, “A autogestão das lutas operárias”, é apresentada a pré-condição sem a qual qualquer revolução proletária torna-se impossível: a autogestão das lutas. O que precisamente significa isto? Nada mais nada menos que “a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores” como disse Marx na introdução aos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores, a primeira Internacional. No período em que o Manifesto do Partido Comunista foi redigido, a luta proletária era ainda inaugural, na Alemanha e em alguns países, a burguesia ainda lutava contra os senhores feudais, o proletariado ainda não tinha as ferramentas necessárias para derrubar a burguesia como um todo, mas mesmo assim, as jornadas de fevereiro de 1848 assustaram a classe burguesa que se consolidava. 23 anos depois, no ano de 1871, em Paris, o proletariado mostra sua verdadeira face à burguesia e a classe dominante treme diante daquela insurreição. A Comuna de Paris, como a primeira experiência histórica do proletariado enquanto classe para si, ou seja, que expressa seus interesses de classe, levam Marx e Engels a fazer uma pequena “correção” em seu Manifesto. No prefácio de 1872, afirmam que o proletariado não pode direcionar suas lutas para a conquista do poder de estado, como haviam afirmado em 1848, mas sim que deve aboli-lo imediatamente com a intenção de criar o autogoverno dos produtores. A Comuna de Paris seria a forma finalmente encontrada de uma associação verdadeiramente livre de produtores. 

Várias outras experiências se sucederam após a Comuna: as revoluções russas de 1905 e 1917, as tentativas de revolução na Alemanha, Itália, Hungria etc. no período de 1918 a 1923, a tentativa de revolução na Hungria e França em 1956, o maio de 1968 francês, as greves selvagens na Europa na década de 1970, a formação de Conselhos operários na Polônia em 1980 etc. Mais recentemente, algumas experiências limitadas na Argentina em 2001 com a criação das assembléias de bairros e o movimento piquetero, a experiência de Oaxaca no México etc. demonstram que as lutas operárias não acabaram, mas que pelo contrário, expandiram-se para o mundo inteiro, posto que o capitalismo estende hoje seus tentáculos a todos os lugares. 

Além destas experiências históricas aqui citadas e inúmeras outras que não foram destacadas, alia-se toda a produção cultural ligadas a elas. Destaco o Comunismo de Conselhos desenvolvido por entre outros: Karl Korsch, Otho Rhüle, Anton Pannekoek, Herman Gorter, etc. O Comunismo de Conselhos, que se consolida na segunda metade da década de 1920 é a expressão teórica mais desenvolvida da classe operária até então. Desenvolveu até as últimas conseqüências a idéia de classe operária para si, vendo nos conselhos operários a forma e o princípio geral de organização das lutas operárias na sociedade capitalista bem como a forma e o princípio de auto-organização da sociedade futura. 

É com base nestas experiências históricas e, entre outras concepções, mas principalmente o Comunismo de Conselhos, que Nildo Viana coloca no primeiro plano a necessidade de autogestão das lutas operárias, pois é através delas que se criam as condições materiais de se abolir as organizações burocráticas: partidos (todos), sindicatos (todos), estado (todos). Além disso, os conselhos operários são a organização necessária para auto-educação do proletariado, tanto no seu processo de luta contra a burguesia e a burocracia, mas principalmente na sua maior tarefa, ou seja, reorganizar e gerir a futura sociedade. 

A seção 3, “As tarefas dos militantes autogestionários – estratégia revolucionária”, é exclusivamente dedicada ao papel dos militantes revolucionários. Os grupos e os militantes revolucionários não são a “vanguarda” da classe operária. Aos grupos revolucionários não compete dirigir a classe, determinar os rumos e os ritmos das atividades da classe. Também não é uma ação revolucionária ficar nos limites das lutas reivindicativas do proletariado. Assim, uma grande contribuição dos militantes é a luta cultural, ou seja, produção de uma interpretação teórica profunda da realidade, crítica implacável de toda e qualquer ideologia, ou seja, tudo aquilo que contribua com o avanço da consciência revolucionária. 

A única estratégia verdadeiramente revolucionária dos militantes autogestionários é contribuir com a auto-emancipação do proletariado: “O papel dos militantes autogestionários é, envolvidos na dinâmica da luta operária, acelerar o processo revolucionário e reforçar as condições necessárias para a vitória do proletariado. É necessário desencadear uma intensa luta cultural e política com o objetivo de jogar as massas na luta direta pela sua emancipação e criar a ação revolucionária das classes exploradas” (Viana, 2008, p. 35). Assim, ao militante não cabe ficar sentado no sofá da sala assistindo TV, como também não é revolucionário ser “vanguarda”, da mesma forma que é contra-revolucionário ficar no nível das lutas espontâneas e autônomas. A única estratégia revolucionária é articular os fins da luta (a autogestão social) com os meios (a autogestão das lutas). Esta estratégia visa avançar sempre a luta dos estágios espontâneo e autônomo para uma luta autogestionária, o terceiro e o mais radical estágio da luta operária. 

Na seção 4, “Posição diante das demais tendências oposicionistas”, faz uma crítica às concepções ditas de esquerda. Define como tendência oposicionista os grupos e indivíduos que se opõem ao capitalismo ou a governos estabelecidos tanto no plano teórico quanto prático. Cada uma das tendências tem uma base social definida: intelligentsia, burocracia, jovens estudantes etc. podendo ter em uma tendência mais de uma destas. Critica-se o pseudomarxismo acadêmico, o pseudomarxismo reformista, o pseudomarxismo bolchevista, o sindicalismo, o “socialismo” individualista, o “socialismo” filosófico, o “socialismo” romântico e o anarquismo dogmático. Com relação ao anarquismo, é necessário destacar que existe o anarquismo revolucionário. Esta, contrariamente às suas variantes dogmáticas, aponta para uma perspectiva verdadeiramente revolucionária. É uma doutrina com princípios revolucionários, mas sem uma teoria da história e do capitalismo. Alguns anarquistas assumem por isto a interpretação marxista do capitalismo e da história, ou seja, o materialismo histórico-dialético. 

A posição dos militantes autogestionários diante das tendências oposicionistas é variável. Com relação às tendências academicistas, sindicalistas, reformistas e bolchevistas, a relação deve ser de crítica, excetuando em casos raros e em conjunturas específicas nas quais seja possível “uma ação conjunta por questões pontuais”. Com relação às individualistas, românticas, filosóficas e dogmáticas, a relação deve ser de debate franco com o intuito de demonstrar as conseqüências das posições e práticas destas concepções. Com relação ao anarquismo revolucionário, a relação deve ser de ação conjunta e ajuda mútua. É necessário que se diga que estamos falando de concepções e não de indivíduos ou organizações específicas. Um indivíduo pode aderir a uma concepção leninista, por exemplo, mas isto não o impede de em determinado contexto histórico mudar de posição. A falta de consciência da existência de determinadas concepções mais radicais faz com que alguns indivíduos façam a adesão a concepções reformistas ou ingênuas. Neste caso, a possibilidade de avançar para concepções mais radicais é mais factível. Entretanto, em alguns indivíduos isto já é mais problemático, pois a estrutura de personalidade de algumas pessoas que ao entrar numa dada organização burocrática vêem nela a maneira necessária, pois isto reflete a sua própria mentalidade burguesa e burocrática. Isto torna mais difícil sua mudança de concepção, pois reflete seus valores, sentimentos, enfim, o conjunto de sua mentalidade. A crítica deve ser direcionada às concepções e não a indivíduos considerados isoladamente. É claro que determinados indivíduos de organizações burocráticas, principalmente seus chefes, dificilmente mudarão de concepção. Neste caso, o combate deve ser franco e direto. 

Encerra-se o manifesto com a seção 5, “A sociedade autogerida”. Nesta última parte, Nildo Viana faz uma belíssima análise utópica. A utopia, no sentido em que Ernst Bloch no seu livro O princípio Esperança emprega o termo, trata-se de uma visualização da tendência, manifestando uma consciência antecipadora. Utopia, nestes temos, não é considerada como sendo uma imagem ilusória de um lugar que não existe. Esta é uma utopia abstrata. Para Bloch, a utopia deve ser concreta, ou seja, deve ser a visualização do futuro (consciência antecipadora), mas considerando os processos de tendência. Trata-se na verdade do rompimento com o saber meramente empírico; com esta cisão, a esperança entra como categoria analítica da realidade presente. A história até Marx considerou somente o passado. A partir do materialismo histórico-dialético, o futuro, a utopia concreta entra em cena na leitura do mundo. Deste modo, as antevisões da sociedade do futuro, a sociedade autogerida, não são abstrações sustentadas em castelos de carta, são na verdade a fuga do pensamento para o futuro, a colocação da realidade no front entre o hoje e o amanhã, sendo este a expressão de uma tendência profunda existente nesta sociedade. 

A análise que o autor faz da sociedade autogerida é realizada a partir da observação das experiências revolucionárias existentes até então e nas interpretações teóricas sobre estas experiências. O modo de produção capitalista tem como sua essência a produção de maisvalia. É a partir dela e para sua reprodução que tudo o mais se estrutura: mercado, estado, dinheiro, individualismo, burocracia, burguesia-proletariado etc. A essência do modo de produção comunista, pelo contrário, é a autogestão social. A partir da generalização da autogestão através dos conselhos operários, que na sociedade autogerida deverá mudar de nome, visto que não mais existirão operários, mas somente produtores livremente associados, tudo o mais será re-estruturado. O estado, o mercado, o dinheiro e as classes sociais sucumbirão. Um novo ser humano será construído, uma nova mentalidade, uma nova sociabilidade, uma nova forma de associação entre as pessoas se erguerá. 

O Manifesto Autogestionário é, portanto, uma leitura indispensável para os militantes revolucionários hoje. Quem quiser ter acesso a uma obra de indiscutível radicalidade, de nomeada coerência e inteira correspondência com o processo revolucionário deve ler este manifesto. E, a partir daí, como provoca o autor, cada um deve se sentir tentado a escrever seu próprio manifesto, pois isto é coerente com marxismo revolucionário, libertário. No final das contas, este pequeno plágio é uma das obras mais originais dos últimos tempos.

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:
http://www.espacoacademico.com.br/092/92res_santos.pdf

sexta-feira, 18 de março de 2016

Ascensão e Queda dos Partido dos "Trabalhadores"



Ascensão e Queda do PT

Nildo Viana



 O PT – Partido dos Trabalhadores, nasceu num processo de avanço das lutas sociais no Brasil. A luta operária que gerou no ABC paulista os conselhos de fábrica no bojo de um forte movimento grevista foi fundamental nesse processo. Nesse momento, a Igreja com as entidades de base, outros setores da sociedade, se mobilizaram. Não havia homogeneidade, mas havia um objetivo perseguido pela ampla maioria: democracia. O PT emerge do novo sindicalismo e desse processo, aglutinando também um conjunto de intelectuais e grupos políticos de esquerda. A hegemonia interna, no entanto, era da ala moderada, que tinha no operário Lula o grande suporte popular. Apesar da hegemonia da ala moderada, intelectuais e grupos mais à esquerda, bem como uma militância com um número expressivo de trabalhadores das classes desprivilegiadas, fizeram o PT ter um discurso mais à esquerda.

A evolução do PT mostrou o que já havia acontecido na social-democracia europeia e em todos os países do mundo. Os partidos, supostamente “operários” ou “social-democratas”, são, no fundo, organizações burocráticas que criam interesses próprios (1). Eles começam como pequenas burocracias e discurso mais radical e tão logo a máquina partidária vai crescendo, os mais radicais vão saindo, ou sendo expulsos (2), novos membros, geralmente oportunistas querendo entrar para a política institucional, vão entrando. As vitórias eleitorais significam mais cargos, mais interesses, menos radicalidade. O PT foi crescendo e se tornando cada vez mais conservador. Esse processo foi se aprofundando com o passar dos anos e eleições, até chegar ao momento de ascensão ao poder, as eleições de 2002. Foi nesse ano que o PT resolveu ganhar as eleições a qualquer custo e, obviamente, todos sabiam que o custo seria moderar mais ainda o discurso, buscar apoio de setores do capital e conquistar a confiança abandonando qualquer resquício de posição política à esquerda. O PT fez tudo para tranquilizar o capital nacional e internacional e conseguir o apoio necessário. O tradicional vice-presidente do PC do B (Partido Comunista do Brasil) foi substituído por José Alencar, do PL – Partido Liberal, um capitalista do setor têxtil. A aliança partidária passou a ser mais variada e com setores mais conservadores. E cabe destaque, no conjunto de alianças estabelecidas, a realizada com a Rede Globo (3), s
ua antiga inimiga e uma das responsáveis por sua derrota em 1989. Uma nova imagem do PT e dos seus integrantes vai sendo formado, visando ganhar a confiança da classe dominante e do bloco dominante, conquistando apoio até do capital comunicacional, estratégico para a vitória eleitoral. Quem vende a alma recebe o que quer,
mas fica em dívida com o comprador. O PT, tal como afirma Lula, não queria esperar 30 anos para chegar ao poder (4). O apoio de Sarney e, posteriormente, de Maluf e outros mostravam que a burguesia poderia confiar tranquilamente em Lula. A estratégia do PT era se incluir no bloco dominante, pois somente assim teria chances eleitorais reais.

O Governo Lula assume uma posição neoliberal, tal como exigida pelas necessidades do capital, com feição populista, tal como seus programas sociais, inicialmente o Fome Zero e os posteriores. O neoliberalismo neopopulista, que tinha alguns pilares, como garantir a estabilidade financeira e política (a política financeira seguiu esse caminho), cortar gastos, entre outros, foi seguida ao lado de alguns gastos sociais, mínimos, nas políticas voltadas para o lumpemproletariado (no sentido amplo do termo, incluindo todos que estão no desemprego e subemprego), ao lado de políticas sociais paliativas e políticas segmentares (visando certos segmentos sociais, embora somente atingisse os seus estratos superiores, como negros, mulheres, etc.), cooptação de movimentos sociais, aumento relativo do consumo, manipulação das estatísticas (que apontavam diminuição da pobreza, aumento da “classe média”, etc.). Nesse contexto, mantendo o apoio do capital comunicacional e com a acumulação de capital em ascensão, tais políticas conseguiram um amplo apoio. Os setores mais radicais do PT e da sociedade não conseguiam maior espaço e a maioria acreditava no discurso evolucionista de que os passos seguintes apontariam para reformas mais profundas. Nesse momento, nem o discurso social-democrata e suas reformas estruturais apareciam mais. O PT se tornou ainda mais conservador e se tornou governo, estando alegremente ao lado de Sarney, Collor e Maluf, grande parte do capital, especialmente o comunicacional, com destaque para as Organizações Globo. As chamadas conquistas do Governo Lula foram possível por ser um período de estabilização da acumulação de capital, que só se estabiliza com a reprodução ampliada do capital, o chamado “crescimento econômico” e qualquer governo no lugar realizaria o mesmo, no que se refere ao consumo, a diferença seria que nem todos fariam a política neopopulista de cooptação e políticas segmentares.

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Apesar de alguns percalços, o Governo Lula conseguiu, nesse período, manter o governo e a estabilidade e ainda garantir um terceiro mandato para o seu partido, através de Dilma Roussef. O Governo Dilma não teve a mesma sorte, apesar de no início não ter encontrado grandes problemas, até que um novo contexto emergiu. Por um lado, a crise financeira de 2008 e os primeiros momentos de desestabilização do regime de acumulação integral (5), começam a se fazer sentir alguns anos depois no Brasil, bem como graças à dinâmica interna do capitalismo brasileiro. O desgaste do Governo Dilma ocorreu de forma mais visível a partir das manifestações de 2013, que começou com as manifestações estudantis de maio, que se transformaram em manifestações populares em junho. O Governo Dilma prometeu muito para arrefecer os ânimos dos manifestantes, mas tão logo elas diminuíram, tudo voltou a ser como antes. As ações governamentais diante das pequenas manifestações posteriores contra a Copa do Mundo, marcadas por uma intensa repressão policial, mostraram uma face a mais do governo, que com isso perdeu apoio e voto em setores da juventude, dos trabalhadores e de certos grupos políticos, somando aos que já possuíam essa posição anteriormente.

As eleições de 2014 mostraram o enfraquecimento de Dilma Roussef, que perdeu votos que foram para, por um lado, os demais partidos concorrentes (e, no segundo turno, para o candidato do PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira), por outro, para as abstenções, votos nulos e brancos, que, somados, significaram quase um terço do eleitorado.

No contexto das eleições, a situação financeira do país encontrava problemas crescentes e seriam necessárias algumas medidas impopulares, coisa que a presidente e candidata não quis fazer. O aumento da dívida pública e déficit primário ocorrem no primeiro semestre de 2014 (6).
Isso geraria mais problemas adiante de qualquer forma, mas sem agir nesse momento, as consequências seriam mais fortes, o que era previsível. Isso provocou a necessidade de medidas urgentes por parte do governo, num contexto de ano eleitoral e com a presidente sendo candidata à reeleição (7), motivo pelo qual isso não ocorreu. Dilma encerrou seu primeiro mandato numa situação diferente dos dois anteriores de Lula, em época de dificuldades na acumulação de
capital (“crescimento econômico”), além dos limites do governo em matéria de competência e mudança, pois em 2015 poderia ter tomado medidas para minimizar o impacto das mudanças e quase nada foi feito, em parte por questões políticas, em parte por incompetência.

A grande questão é que o PT, por suas origens, por resquícios de discurso de “esquerda”, e por causa de seus compromissos eleitorais (que implica em gastos e evitar determinadas ações necessárias), ao lado de sua inércia em política financeira e resolução dos problemas que emergiram e foram se avolumando, acabou tendo problemas em seu romance com o capital. Já nas eleições de 2014, o capital, reforçado pelo temor das manifestações de 2013 (e o discurso de Dilma e medo de uma adoção de políticas mais desfavoráveis para os seus interesses), já tinha vários setores que se deslocaram para outro apoio eleitoral, muitos com ambiguidades (alguns setores do capital apoiaram financeiramente as duas candidaturas principais, afinal de contas, assim ficariam do lado do governo, independente de quem ganhar). O capital comunicacional também começa a se deslocar e a aliança PT-Globo é desfeita.

Esse processo foi marcado por um ano de 2015 muito ruim para o Governo Dilma e PT. A crise financeira vai paulatinamente se aprofundando e o imobilismo do governo mostra isso. As greves aumentam e algumas manifestações começam a ressurgir. A repressão e as ações governamentais que apontam para precarização da educação e outros setores, gera novo descontentamento. O governo Dilma e seus aliados, a ala governista do bloco dominante, começa a perder apoio. Setores do capital, a maior parte do capital comunicacional, adotam posição cada vez mais contra o governo. As denúncias de corrupção vão tomando corpo, gerando impopularidade e servindo de pretexto para a ala oposicionista do bloco dominante atacar a ala governista. A palavra impeachment vai sendo cada vez mais proferida. O PT e o Governo Dilma perdem espaço e apoio progressivamente. A burocracia estatal estatutária (que é permanente) começa a se desligar da burocracia governamental (que é provisória), o que se pode ver pela autonomização do aparato jurídico e repressivo. O aparato repressivo (polícia federal) e o aparato jurídico fecham o cerco e recebem apoio maciço do capital comunicacional.

As políticas petistas não conseguiram organizar bases permanentes de apoio. Os setores dos movimentos sociais cooptados não são uma grande força mobilizadora, e os que já eram aparelhados pelo PT também. A parte da intelectualidade que se alia à ala governista do bloco dominante, também não tem grande presença intelectual e política. O exército de descontentes aumenta, pois, por um lado, tanto o bloco revolucionário quanto grande partes das classes desprivilegiadas, rechaçam o governo petista e, por outro, setores das classes privilegiadas também mostram um grande descontentamento com o PT. Com uma base de apoio tão frágil, e com a crise financeira, os setores do capital já descontentes foram reforçados por novos setores do mesmo, bem como pelo capital comunicacional e a burocracia estatutária. O desenrolar do processo, com a crise financeira sem grande perspectiva de solução e os escândalos de corrupção, foram suficientes para que o capital repensasse sua posição diante do governo Dilma. O PT entrou no seleto grupo do bloco dominante e para isso vendeu sua alma ao capital. No entanto, não entendeu que ele era um “convidado”, oriundo do bloco progressista, e não um sócio permanente e que, por isso, poderia ser convidado a se retirar a qualquer momento. Uma vez no poder, usou e abusou do mesmo, inclusive contra as classes desprivilegiadas e bloco revolucionário, bem como aparelhou o Estado pensando pensando que isso garantiria sua permanência. Mostrou também incompetência e inoperância, junto com sua ambição de permanecer no poder acima de tudo, e isso gerou o seu isolamento no bloco dominante, facilitado por seu afastamento das classes desprivilegiadas, o que foi perceptível em 2013. A "hora da estrela" passou e agora é o momento de sua queda.

Assim, os petistas de carteirinha tem certa razão ao reclamar da Rede Globo, do aparato jurídico e repressivo e dos “exageros”. Ele deu brechas e a ala oposicionista do bloco dominante, cada vez mais forte, as usou: via oposição parlamentar e pedido de impeachment, via capital comunicacional, via mobilização da população e aparato repressivo e jurídico. Dessa forma, o Governo Dilma foi perdendo todo o respaldo (8).
Isso tudo explica a queda do PT, que voltar a ser um mero partido do bloco progressista (e aí vai mudar um pouco o discurso, com tom mais progressista e menos moderado) e sai do grupo seleto do bloco dominante. O principal responsável por isso tudo é o próprio PT, por ter ficado embebido com o poder e não entender a luta de classes, sem compreender também a dinâmica da acumulação de capital e por isso achar que ficaria sempre junto com o bloco dominante. Não fez o trabalho de constituir bases mais sólidas para manter sua força diante do capital. O Partido dos “Trabalhadores” não buscou apoio das classes trabalhadoras, fazendo muito pouco por elas.

O atual discurso petista, sobre “golpe” é totalmente sem sentido. O capital está fazendo o que sempre fez e foi o PT, dentro da esquerda capitalista, o que mais insistiu na defesa da “legalidade”, do “estado de direito”, “democracia (representativa)”. Tudo que está sendo feito é dentro dessa legalidade, estado de direito e democracia representativa, e, portanto, o discurso do golpe é falacioso. Esse é o processo normal na democracia representativa e capitalismo e, portanto, essa “indignação seletiva”, para usar linguagem petista, que se manifesta apenas quando tem seus próprios interesses feridos, é a lógica do oportunismo. Afinal, o PT foi beneficiado por esse mesmo esquema, o reproduziu, não fez nada contra, se beneficiou. Os governos petistas fizeram coisas muito semelhantes (e inovaram com o aparelhamento do estado como nunca visto antes) e nas últimas eleições, a prática petista contra seus adversários é um adendo ao engodo eleitoral realizado. O que está sento feito com o Governo Dilma e PT é o que sempre se fez e sempre se fará numa sociedade capitalista.

A corrupção petista existe, não é uma invenção. Sem dúvida, outros corruptos e muita corrupção existem nos demais partidos e a corrupção é generalizada no capitalismo (9). O PT fez o jogo, mas agora os donos da bola não
querem mais ele no campeonato. Vai ser expulso. Se procurarem a defesa das classes desprivilegiadas, do bloco revolucionário, e até mesmo setores do bloco progressista, não encontrarão, a não ser no caso de alguns ingênuos que acreditam no discurso do golpe. No entanto, se o PT continuasse no governo, os problemas continuariam. A retomada da acumulação de capital continuaria travada por causa dos compromissos eleitorais do PT, o que prejudicaria a classe capitalista e, por conseguinte, atingiria outras classes, incluindo as desprivilegiadas (aumento do desemprego, etc.) e isso geraria um aprofundamento da crise e da deterioração das condições de vida da população em geral. O PT conseguiu criar uma situação absurda, na qual sua permanência no poder prejudicaria a todos e só beneficiaria ele mesmo.

Nesse quadro, só haveria a solução capitalista, o que o Governo Dilma fez apenas moderadamente quando era preciso ser mais forte e radical. Isso reforçaria o descontentamento da população e o PT não conseguiria manter seu projeto de poder (10). Entre a solução capitalista, que o governo
Dilma não efetivou, e a solução da continuidade indefinida da crise e agravamento da mesma, só haveria uma outra solução, que seria uma transformação social, a instituição de uma nova sociedade. Os iludidos pensam que a manutenção do Governo Dilma poderia resolver isso, mas apenas iria piorar a situação e se ganhasse as próximas eleições, teria que efetivar, sob forma drástica, políticas de austeridade. Já está na hora de acabar com a era da ingenuidade. Assim, tanto faz quem é o governo, e já no século 19 Marx já alertava para isso, a política está a serviço do capital. Essa disputa toda é apenas entre, por um lado, partidos querendo se manter no poder, e, por outro, os interesses mais determinantes do capital. O PT está isolado e não tem como reagir. Ele declarou a sua própria derrota e voltará à sua situação anterior.

Por isso, a ilusão petista, já denunciada há muito tempo, foi perdendo força. Uma verdadeira alternativa precisa ser construída, pois nesse jogo, as regras garantem o capital sempre como vencedor e a disputa interna do bloco dominante é apenas para definir a política mais adequada à acumulação do capital e quem estará no aparato estatal, usufruindo de seus privilégios, corrupção, etc. É hora do bloco revolucionário e classes desprivilegiadas, especialmente o proletariado, começar a agir em torno do projeto autogestionário ao invés de reproduzir as ilusões partidárias e eleitorais. 

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Leia mais:

A Insustentabilidade do Governo Dilma:

A Luta de Classes no Brasil:

A Corrupção na Sociedade Brasileira:

As Lições das Ruas (Análise das manifestações de 13 de março de 2016).
http://informecritica.blogspot.com/2016/03/as-licoes-das-ruas.html

O Governo Lula e as Ilusões Perdidas:
http://informecritica.blogspot.com.br/2015/08/o-governo-lula-ou-as-ilusoes-perdidas.html

Versão em Áudio:

Veja mais:

Dilma, um rock bolero:

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Manifesto Autogestionário em HTML

Capa do Manifesto Autogestionário, 2a edição (Rizoma Editorial).
VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. 2a Edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.




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Sumário do Manifesto Autogestionário

Capa da primeira edição do Manifesto Autogestionário, 2008 (Achiamé Editora).


Sumário


Prefácio ______________________________________________________________________03

A Burguesia e o Proletariado: A Dinâmica da Luta entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo ______________________________________________________06
Burguesia: O Domínio do Trabalho Morto __________________________________08
Proletariado: A Potência do Trabalho Vivo  _________________________________11

A Autogestão das Lutas Operárias ______________________________________________14
da Greve Geral aos Conselhos Operários ___________________________________14
Estado e Burocracia: O Véu da Contra-Revolução ____________________________17
Das Lutas Espontâneas e Autônomas para as Lutas Autogestionárias _____________18

As Tarefas dos Militantes Autogestionários – Estratégia Revolucionária _____________21
O Papel dos Militantes Autogestionários na Teoria Revolucionária _______________21
Militantes Autogestionários e Estratégia Revolucionária Hoje ___________________24
Luta de Classes e Instituições Burguesas____________________________________31
As Tarefas Atuais dos Militantes Autogestionários  ___________________________39
A Autonomização da Classe Operária ______________________________________40
A Autogestão como Resultado Positivo da Guerra Civil Aberta  _________________41

Posição diante das demais Tendências Oposicionistas __________________________43
O Pseudomarxismo Acadêmico  __________________________________________44
O Pseudomarxismo Reformista ___________________________________________46
O Pseudomarxismo Bolchevista  __________________________________________47
O Sindicalismo________________________________________________________48
O “Socialismo” Individualista ____________________________________________49
O “Socialismo” Filosófico _______________________________________________51
O “Socialismo” Romântico ______________________________________________53
O Anarquismo Dogmático _______________________________________________55
O Anarquismo Revolucionário ___________________________________________56
Militantes Autogestionários e Tendências Oposicionistas ______________________57

A Sociedade Autogerida _______________________________________________________59
A Instauração da Autogestão Social _______________________________________60
O Modo de Produção Comunista __________________________________________63

As Formas Sociais Comunistas ___________________________________________65

Prefácio do Manifesto Autogestionário

Prefácio







O presente manifesto é um plágio. Um plágio descarado do Manifesto Comunista de Marx e Engels. E é mais do que um plágio: é um plágio de um plágio, afinal, muitos os acusaram de terem plagiado o Manifesto da Democracia, de Victor Considerant[1].
Marx plagiou Considerant?
O Manifesto da Democracia foi publicado cinco anos antes do Manifesto Comunista, mas somente uma análise detalhada do conteúdo dos dois textos, juntamente com outros elementos, poderia responder a esta questão[2].
De qualquer forma, o presente plágio é formal, embora o conteúdo tenha semelhanças, principalmente nas duas primeiras seções. Este é um alegre plágio atualizador. Seria bom se cada indivíduo escrevesse o seu próprio Manifesto Comunista, pois isto estaria de acordo com uma concepção libertária, segundo a qual cada indivíduo deve se formar e se aperfeiçoar no sentido de se armar para contribuir com o processo emancipatório da humanidade.
O motivo de um plágio nunca é apenas manifestar a arte do plagiador, pois sempre existe outro objetivo: a fama, o dinheiro, entre outras prosaicas motivações burguesas. No entanto, aqui o plágio tem outro objetivo: contribuir com o processo de libertação humana.
A forma do plágio tem sua origem na necessidade de repensar tudo o que foi apresentado no Manifesto Comunista, mas de forma atualizada. Os autores do Manifesto buscaram, na medida do possível, atualizar o texto, tal como se vê nos seus prefácios às edições posteriores. A principal atualização foi o abandono da concepção estatizante em favor de uma concepção autogestionária, mutação ocorrida após a heróica experiência proletária da Comuna de Paris. No entanto, os leitores pouco se preocuparam com as revisões dos prefácios às novas edições. Aqui, o caráter autogestionário é ressaltado, transformando-se no centro do manifesto. Não é uma “correção”, é o princípio fundamental. Além disso, as mudanças históricas pós-manifesto nos deram muitas lições que Marx e Engels incorporariam na obra.
A parte do Manifesto Comunista menos passível de mudanças é a referente à luta entre burguesia e proletariado (cujo título é “burgueses e proletários”). No entanto, aí há mudanças formais para impedir deformações e uma maior clareza ajuda na elaboração de um novo manifesto. Também há a incorporação de uma breve análise do desenvolvimento capitalista recente, apresentando a atual fase do capitalismo e seu processo de crescente decomposição.
O presente manifesto toma como ponto de partida a situação atual, concreta, da sociedade moderna. Realiza uma análise do capitalismo, ponto de partida necessário para se passar para o processo de transformação social e instauração da sociedade autogerida. Iremos apresentar o movimento do capital, isto é, da classe capitalista, do processo de acumulação, apontando suas contradições, e da potencialidade revolucionária que surge no seu interior, no movimento operário. A primeira parte deste manifesto se dedica a esclarecer o processo de exploração e dominação e o processo de luta pela libertação.
A segunda seção focaliza o engendramento do comunismo, da sociedade autogerida, surge como possibilidade e potencialidade na relação-capital. As lutas operárias, desde a formação da classe operária, e de outros setores sociais, apontam para a possibilidade revolucionária, o desenvolvimento da consciência revolucionária, a auto-organização, o engendramento de formas de ações e organizações que são o embrião da futura sociedade autogerida.
Neste processo, nesta luta de classes, temos que nos posicionar, agir. A terceira seção trabalha justamente isto: o que devemos fazer neste processo concreto, real, permanente, de lutas? Qual nosso papel neste contexto? A discussão sobre o papel dos militantes autogestionários (que no Manifesto de Marx e Engels corresponde à seção “Comunistas e Proletários”) é fundamental, principalmente depois da deformação do pensamento marxista realizado pelo leninismo e social-democracia.
Ao discutir nossa ação política, é preciso também analisar a prática política que, em muitos casos, dizem ter objetivos semelhantes ou que podem possuir alguma relação com a nossa posição. Isto nos remete à quarta parte, voltada para discutir as tendências contemporâneas oposicionistas e seus limites. As diversas oposições na sociedade contemporânea devem ser analisadas e ver o seu papel no contexto das lutas sociais atuais.
Por fim, a luta pela sociedade autogerida é a constituição de uma utopia, a realização de sonhos e desejos antigos. Não é possível prever os detalhes da futura sociedade, o que seria utopismo, mas podemos delinear, em linhas gerais, partindo das teorias revolucionárias e das experiências históricas, as características fundamentais da nova sociedade. Neste sentido, dedicamos a última seção a discutir a sociedade autogerida, a realização do sonho da libertação humana, o objetivo e razão de ser deste manifesto.
Para concluir, deixamos claro que este texto é um manifesto. É o ato de manifestar uma determinada concepção política, fundada em determinada teoria da sociedade, com o objetivo de fortalecer a tendência que se deseja. É uma arma de luta e neste sentido não pode poupar nada e ninguém. A arma da crítica vem acompanhada por um projeto autogestionário. É uma obra simultaneamente afirmativa e negativa. Nega o domínio do capital e afirma o domínio dos seres humanos livremente associados, a autogestão. É um manifesto que busca desencadear muitas outras manifestações e destas manifestações possa brotar a manifestação de uma sociedade autogerida.



[1] Veja esta acusação em: Rocker, R. Marx e o Anarquismo. In: Guérin, Daniel e outros. Os Anarquistas Julgam Marx. Brasília, Novos Tempos, 1986. É bastante duvidoso que isto seja verdadeiro. Em primeiro lugar, Considerant dificilmente teria as mesmas teses expostas por Marx, embora pudesse haver semelhanças em alguns pontos; em segundo lugar, O Manifesto Comunista foi inspirado em um texto anterior de Engels, Princípios do Comunismo, a não ser que se considere que este também tenha plagiado o Manifesto de Considerant. Por último, mesmo que haja muitas semelhanças, isto não anula a originalidade de Marx e um anarquista honesto como Luigi Fabri coloca bem isto ao comentar duas frases de Marx (“Proletários de todo o mundo, uni-vos” e “a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores”): “falamos, compreenda-se, das idéias contidas naquelas duas frases e não apenas das simples palavras. Essas idéias, sob outra forma, haviam sido expostas por outros também, antes de Marx, porém ninguém em seu tempo nem antes que ele, lhes haviam dado tanta importância, e nem as haviam defendido com uma argumentação e documentação histórica tão apaixonada, nem lhes havia, como propaganda tão assídua, assentado tão eficazmente na cabeça dos trabalhadores e de quantos se dedicassem ao estudo do problema social no interesse da classe operária. O mesmo pode-se dizer dos dois conceitos marxistas, que se completam mutuamente, o de luta de classes e o de materialismo histórico. Nos outros escritores socialistas chamados utopistas, anteriores a Marx, e em outros economistas, ainda não socialistas, se encontram muitos de tais conceitos, porém Marx e Engels tiveram o mérito de coordená-los em um sistema, de apresentá-los com uma roupagem científica, de fornecer-lhes uma coesão lógica, de fazê-los, enfim, um argumento de propaganda, uma arma de luta para a classe operária” (Fabri, Luigi. Dictadura y Revolución. Buenos Aires, Projección, 1967, p. 150). 
[2] Depois de ter escrito estas páginas, tivemos acesso à obra de Considerant e a idéia de que Marx tenha plagiado tal obra é totalmente equivocada. Apenas o início dos dois textos, sobre as lutas de classes em sociedades pré-capitalistas é semelhante e mais alguns detalhes. A grande questão é que muitos repetem acriticamente tais afirmações sem conferir os textos originais. Devido a isto estamos preparando uma tradução do livro de Considerant com um prefácio esclarecendo as relações entre as duas obras e o suposto plágio.

Burguesia, Proletariado, Luta de Classes, Trabalho Morto e Trabalho Vivo - Seção 01 do Manifesto Autogestionário

Seção 01:


 

 

 

 

 

Burguesia e Proletariado:

A Dinâmica da Luta entre Trabalho Morto e Trabalho Vivo





A sociedade moderna nasceu e viveu sob o signo da luta de classes. De um lado, a classe possuidora dos meios de produção que explora aqueles que nada possuem além de sua força de trabalho. De outro, aqueles que não possuem os meios de produção e são constrangidos a se submeterem à exploração. A exploração capitalista se realiza através da extração de mais-trabalho sob a forma de apropriação do mais-valor produzido pelos trabalhadores.
Antes da sociedade moderna as coisas eram diferentes. Nas sociedades chamadas “primitivas” não havia classes sociais, exploração, dominação, propriedade privada dos meios de produção. Os seres humanos viviam numa constante busca de garantir sua sobrevivência e para isto realizavam a cooperação no processo de trabalho através de um processo coletivo de produção e distribuição dos bens materiais produzidos. Os seres humanos viviam sob relações sociais igualitárias, sem a existência da propriedade privada.
Com o surgimento da propriedade privada, temos a constituição das sociedades de classes e da luta de classes. Por isso já se disse, “a história da sociedade tem sido, até hoje, a história das lutas de classes”[1]. As classes proprietárias monopolizavam os meios de produção e constrangiam as classes não-proprietárias a se submeter à sua dominação. O trabalho deixa de ser fundado na cooperação igualitária e passa a ser comandado pela divisão social do trabalho, nos quais uns dirigem o processo de trabalho – a classe proprietária – e outros são dirigidos – a classe produtora.
A propriedade privada é uma relação social entre proprietários não-produtores e produtores não-proprietários. É uma relação de classes sociais. A relação entre as classes sociais é marcada pela luta, pelo conflito de interesses, pela dominação e exploração. As classes sociais exploradas não aceitam passivamente esta situação, elas resistem, lutam. É por isso que surge uma instituição voltada para amortecer os conflitos, controlar as classes exploradas, reproduzir as relações sociais existentes. Esta instituição é o Estado, instituição que representa os interesses da classe dominante, mas que se apresenta como estando acima dos conflitos de classes, acima de interesses particulares, como sendo representante do interesse geral da sociedade. Obviamente que tanto a classe dominante quanto o Estado devem ofuscar a dominação e a exploração, bem como seus verdadeiros interesses.
Surgem, simultaneamente, as idéias, representações ilusórias da realidade, que visam naturalizar, eternizar, universalizar as relações de dominação e exploração de uma determinada sociedade. Estas representações ilusórias são as idéias dominantes de uma determinada sociedade e expressam os interesses da classe dominante. Também se constituem determinados valores e sentimentos a partir destas relações sociais marcadas pela dominação e exploração e assim se constitui uma determinada mentalidade em cada época que correspondem aos interesses dominantes.
Com base nestas representações ilusórias, valores e sentimentos, ou, em uma palavra, na mentalidade dominante, surge a ideologia, forma sistemática de falsa consciência que transforma em filosofia, teologia, ciência – em síntese, em pensamento complexo – o conjunto de idéias de uma determinada época. Isto tudo reforça o processo de dominação ao ser introjetado também pelos dominados e explorados.
Ao lado disso ocorre a recusa, a resistência, a luta, das classes exploradas. Desde a luta cotidiana no processo de trabalho até as formas marginais de cultura contestadora, temos a resistência e luta das classes exploradas. Na Europa Ocidental, no escravismo antigo, tínhamos, por um lado, a cidade-estado representando os interesses da classe dos senhores de escravos, os guerreiros, o trabalho compulsório dos escravos, a filosofia enquanto forma de ideologia dominante e; por outro, a fuga de escravos, o assassinato de senhores de escravos, a rebelião escrava – cujo exemplo máximo foi a rebelião de Spartacus.
No Feudalismo, tínhamos, por um lado, a propriedade feudal, a classe feudal e o trabalho compulsório, cobrança de tributos, a Igreja e a religião representando os interesses dominantes, etc.; e, por outro, a resistência dos servos, com o roubo de lenha, a busca do comércio, até chegar às rebeliões messiânicas.
Em todas estas épocas, o que se percebe é uma constante luta entre o trabalho morto e o trabalho vivo. O trabalho morto é o trabalho acumulado em bens materiais, as riquezas produzidas e apropriadas pela classe dominante; o trabalho vivo é a força de trabalho ativa, representada pelas classes produtoras e exploradas. As classes produtoras produzem as riquezas, os bens materiais, mas não usufruem delas. As classes proprietárias nada produzem, mas se apropriam do que foi produzido pela classe produtora. Ao se apropriar das riquezas produzidas pelos produtores, a classe proprietária passa a ter sua força retirada destas mesmas riquezas.
É da propriedade destas riquezas produzidas que a classe proprietária retira seu poder material, sua legitimidade e seu braço armado e intelectual. O poder material vem da própria propriedade, pois as terras, dinheiro, máquinas, ferramentas, tornam todos os demais setores da sociedade dependente dela; a legitimidade advém da propriedade, pois é ela que torna justa cobrar tributos, trabalho, etc. em troca do usufruto de parte desta riqueza; o braço armado (exército, guerreiros, etc.) e intelectual (ideólogos) é pago com parte da riqueza adquirida com a exploração dos produtores, tornando-se parasitas a serviço dos dominantes.
A Burguesia: O Domínio do Trabalho Morto
Na sociedade moderna, a classe proprietária é a burguesia e a principal classe produtora é o proletariado. A burguesia surge na Europa Ocidental, o que se tornou possível devido a uma combinação de mudanças sociais, marcadas pela situação derivada dos destroços da sociedade feudal e pela expansão comercial[2], e se expande pelo mundo todo. Surge uma época marcada por uma forma específica de exploração, fundada no processo de acumulação de capital. A burguesia, classe capitalista, funda seu império através da acumulação primitiva de capital, realizada através da expropriação dos camponeses, pelo sistema colonial e por outras formas de pilhagem.
Uma vez possuindo dinheiro para investir, a classe capitalista desenvolve um processo de expansão da produção industrial, que vai gerar o processo de centralização e concentração do capital. No início temos a pilhagem, a acumulação primitiva de capital, depois temos a interferência da burguesia nascente no processo de produção, transformando os artesãos em trabalhadores assalariados.
O salariato é uma forma de exploração que nem sempre é visível à primeira vista. Os trabalhadores assalariados vendem sua força de trabalho, sua única “propriedade”, aos capitalistas, proprietários dos meios de produção, em troca de um salário. Os capitalistas utilizam a força de trabalho por determinado período de tempo e pagam um salário em troca. No entanto, a produção dos proletários é maior do que o que receberam como salário e do que o que foi gasto com a compra dos meios de produção (matérias-primas, máquinas, instalações, etc.).
Trata-se de um excedente que só pode existir devido ao trabalho humano, vivo, concreto, que transforma as matérias-primas, utilizando ferramentas e máquinas, em um produto novo, com um valor acrescido ao anterior. O trabalho humano realizado acrescenta valor às mercadorias produzidas, produz um excedente. Este excedente produzido pelos proletários é apropriado pelos capitalistas. Estes, apenas com seus meios de produção, não adquiririam nenhum excedente. Este excedente, portanto, é produto do trabalho vivo da classe operária. Esta classe, ao acrescentar valor às mercadorias, ao produzir um mais-valor (ou “mais-valia”), permite a acumulação de capital e o predomínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, isto é, da classe capitalista sobre a classe operária.
Uma vez se apropriando do mais-valor produzido pela classe operária, a classe capitalista realiza o processo de acumulação de capital e reinveste no processo produtivo e assim aumenta sucessivamente o seu capital. Esta acumulação gera o processo de concentração e centralização do capital em poucas mãos e permite o surgimento, com o desenvolvimento histórico, dos oligopólios – quando um pequeno número de empresas domina o mercado. Outra conseqüência desta acumulação é a característica marcante do capitalismo de se expandir e universalizar. O capitalismo surge na Europa Ocidental, em alguns de seus países, e se generaliza neste continente e se expande paulatinamente para o resto do mundo. Os Estados Unidos logo se industrializa e outros países, como a Rússia, o Brasil, entre outros, começam sua industrialização no início do século 20. A universalização do capitalismo ocorre simultaneamente, pois ele invade o conjunto das relações sociais, mercantilizando e burocratizando tudo. A produção de mercadorias passa a atingir a totalidade dos valores de uso na sociedade moderna e os bens não materiais e serviços passam a assumir a forma-mercadoria, ou seja, se torna mercancia[3].
Outra conseqüência da acumulação capitalista é a alteração da composição orgânica do capital. Com o desenvolvimento capitalista, cada vez mais o capitalista gasta em tecnologia, meios de produção e cada vez menos com força de trabalho. Como é esta última que produz mais-valor, então temos a queda da taxa de lucro médio. O trabalho morto se torna cada vez mais amplo e passa a dominar a sociedade, mas ele apenas repassa o seu valor às mercadorias e assim temos, proporcionalmente, cada vez menos produção de mais-valor pela força de trabalho. Isto provoca a tendência da queda da taxa de lucro médio. O modo de produção capitalista cria várias contra-tendências para combater esta queda, desde o aumento da massa de lucro[4] até a intervenção estatal no processo de produção, chegando até mesmo a destruir as forças produtivas, o que é realizado principalmente através das guerras.
Este processo de produção e expansão capitalista não é feito sem agentes. A classe capitalista e suas instituições são os agentes deste processo. O capitalista individual se sente como um feiticeiro que vê forças mágicas dominá-lo. Ele é pressionado pela concorrência das outras empresas capitalistas, pela luta operária, pela produção de outros países, pelos pequenos produtores, pelos limites legais e ação estatal. Assim, seu espaço de ação é limitado. O movimento do capital é o movimento da classe capitalista em seu conjunto e este fornece a dinâmica da sociedade capitalista.
O Proletariado: A Potência do Trabalho Vivo
Mas o capital é uma relação social, uma relação de classe: de um lado a burguesia, cuja força está no trabalho morto, e, de outro, a classe proletária, cuja força está no trabalho vivo. A relação se realiza no processo de produção do mais-valor, relação que caracteriza e constitui estas duas classes sociais. A produção de mais-valor é o que caracteriza o modo de produção capitalista[5]. O movimento do capital é marcado pelo predomínio da classe capitalista que impõe sua lógica de reprodução ampliada do capital, a acumulação capitalista, a ação estatal de acordo com seus interesses e domina o conjunto das instituições e da sociedade. Mas isto não se faz sem luta, sem resistência. A classe operária resiste e sua resistência influencia nos rumos do desenvolvimento capitalista.
Isto pode ser observado na história do capitalismo, que é marcada pela sucessão de regimes de acumulação, produto das lutas de classes. Um regime de acumulação é marcado por uma determinada forma de extração de mais-valor[6] realizada no processo de trabalho, por determinada forma estatal e determinadas relações internacionais. A primeira fase do capitalismo foi marcada pela sua formação incipiente, pela acumulação primitiva de capital e predomínio do capital comercial. O processo de trabalho capitalista era marginal e o sistema colonial e o Estado absolutista eram as fontes da acumulação que permitiria a revolução industrial e a consolidação do capitalismo.
O regime de acumulação que emerge após este período é o extensivo, marcado por uma alta taxa de exploração fundada na extração de mais-valor absoluto, aliado ao neocolonialismo e ao Estado liberal (século 18 e primeira metade do século 19). Ele foi substituído pelo regime de acumulação intensivo, caracterizado pela busca de aumento de extração de mais-valor relativo via organização do trabalho (taylorismo) e pelo Estado Liberal-Democrático e Imperialismo Financeiro, fundado na exportação de capital-dinheiro (segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20).
Após a Segunda Guerra Mundial temos um novo regime de acumulação, o intensivo-extensivo, no qual predomina o fordismo enquanto organização do trabalho (busca de aperfeiçoamento do taylorismo com o mesmo objetivo, aumentar extração de mais-valor relativo, através principalmente do uso da tecnologia), o Estado integracionista (de “bem estar social”, ou “social-democrata”) e o imperialismo transnacional. Este entra em crise na década de 60, mas somente na década de 80 do século 20 é que temos um novo regime de acumulação, o regime integral. Este combina a busca de aumento da extração de mais-valor absoluto e relativo (“reestruturação produtiva”), e uma nova forma estatal, o Estado neoliberal, juntamente com um imperialismo mais agressivo e beligerante, o neoimperialismo. A ordem do regime de acumulação integral é: aumentar a exploração de todas as formas e em todos os lugares!
Esta sucessão de regimes de acumulação expressa a tendência do desenvolvimento capitalista, marcado pelas lutas operárias e pela tendência de auto-dissolução do capitalismo devido à queda da taxa de lucro médio. O modo de produção capitalista, a cada novo regime de acumulação, encontra dificuldades maiores para se reproduzir. A passagem do regime de acumulação extensivo para o regime de acumulação intensivo foi provocada tanto pelas necessidades da acumulação capitalista quanto pela luta operária. A expansão da produção capitalista em diversos países trazia um processo de ampla acumulação de capital e a oligopolização e a luta operária pela redução da jornada de trabalho ao ser vitoriosa, criou um processo de crise. A Comuna de Paris representou o seu golpe de misericórdia que marcou a passagem para o regime de acumulação intensivo, que logo foi abalado pelas novas lutas operárias que se iniciam na aurora do século 20 e se intensificam até que as derrotas operárias marcam a ascensão do nazi-fascismo e a Segunda Guerra Mundial.
O regime de acumulação intensivo-extensivo que lhe sucede parece ser marcado pela estabilidade do capitalismo. No entanto, ele apenas expressa um momento em que todos os países do mundo já são hegemonicamente capitalistas e que o processo de exploração e conflito se torna mais agudo nos países capitalistas subordinados (o dito “terceiro mundo”). Isto ocorre devido ao processo de expansão das empresas transnacionais acaba realizando transferência de mais-valor do capitalismo subordinado para o capitalismo imperialista. Parte do mais-valor extorquido – de forma extensiva, isto é, fundamentalmente extração de mais-valor absoluto – dos trabalhadores locais acaba sendo drenada pelas potências imperialistas.
Com o desenvolvimento capitalista, mesmo estes países se encontram diante de uma nova crise a partir da década de 60 do século 20. As lutas e ditaduras militares são expressão do desenvolvimento capitalista contraditório que gera o regime de acumulação integral, no qual se busca aumentar simultaneamente a extração de mais-valor absoluto e de mais-valor relativo, inclusive nos países imperialistas. Este novo regime de acumulação marca uma ofensiva da classe capitalista em reposta às lutas operárias da década de 60 e das dificuldades crescentes da reprodução capitalista a nível mundial. As lutas operárias começam a se esboçar em reação a este processo de intensificação da exploração[7].
Neste contexto, mudanças nas lutas políticas institucionais, tal como ascensão e fortalecimento das tendências regressivas (neonazismo, misticismo, etc.) e novas formas de integração de setores da sociedade, através principalmente do micro-reformismo[8], além do esboço de ascensão das lutas dos trabalhadores e demais movimentos sociais.
A luta entre trabalho morto e trabalho vivo é uma luta entre burguesia e proletariado que faz parte da essência do capitalismo. Esta luta mostra o predomínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo.
Este processo mostra, também, a potência do trabalho vivo, que busca abolir a dominação do trabalho morto para instaurar o predomínio do trabalho vivo, abolindo o capital e o trabalho assalariado e instaurando a sociedade autogerida. Este processo ocorre nas lutas de classes e o proletariado é o agente que busca efetivar esta nova época da história da humanidade. O trabalho vivo é a fonte da produção de riquezas e ao deixar de ser dominado pelo trabalho morto, cria uma nova sociedade, onde o trabalho morto não possui autonomia e domínio sobre os seres humanos. Neste momento, a história da humanidade passa a ser autogerida por ela mesma.



[1] Marx, Karl & Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, Global, 1988.
[2] Cf. Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
[3] A mercadoria é um valor de uso (bem material) e ao mesmo tempo um valor de troca (valor monetário) que é produzida pelo trabalho humano e sua produção ocorre, na empresa capitalista, devido ao fato de que a força de trabalho acrescenta valor à mercadoria, mais-valor, e assim possibilita o lucro. O que aqui chamamos “mercancia”, ou “forma-mercadoria”, são bens não materiais (com algumas poucas exceções), são geralmente bens culturais ou coletivos, tais como serviços (comércio, educação, atendimento médico, etc.) que assumem a forma de uma mercadoria capitalista sem assumir seu conteúdo, isto é, são “valores de troca” que, embora sejam produzidos pelo trabalho humano, não produzem mais-valor, não estão inseridas na dinâmica da produção e reprodução capitalista de bens materiais. No entanto, ele produz lucro para o capitalista, mas não se trata de produção de mais-valor e sim fornecimento, e o lucro é extraído pela remuneração feita pelo Estado ou outros setores do capital ao invés de provir diretamente da força de trabalho.
[4] A taxa de lucro é o quantum de mais-valor contido numa mercadoria enquanto que a massa de lucro é o total de lucro adquirido com a produção de mercadorias, isto é, no primeiro caso, temos um dado sobre a extração de mais-valor em uma mercadoria em termos percentuais enquanto que, no segundo caso, temos apenas o lucro em sua totalidade. Assim, se uma mercadoria possui 50% de quantum de mais-valor e ele caí para 30% mas a quantidade de mercadorias de 100 sobe para 500, temos uma queda da taxa de lucro de 20% mas um aumento da massa de lucro de 400%. Considerando que o preço de cada unidade é 01 real, temos, então, um lucro que cai de 50 centavos para 30 centavos e isto significa que, de cada 100 unidades, tínhamos um lucro de 30 reais mensais, no primeiro caso, e, no segundo, com o aumento da massa de lucro, 150 reais. Assim, tivemos a queda da taxa de lucro e o aumento da massa de lucro. O grande problema do constante aumento da massa de lucro é que é preciso manter-se indefinidamente e é preciso vender as mercadorias, isto é, ampliar constantemente o mercado consumidor.
[5] Neste sentido, as afirmações de que o modo de produção capitalista é um “modo de produção de mercadorias” é apenas parcialmente verdadeira, pois existem outras formas de produção de mercadorias. Assim, esta afirmação só é verdadeira se se acrescentar que é um modo específico de produção de mercadorias, e sua especificidade se encontra na produção de mais-valor, onde reside a exploração e a constituição da burguesia e do proletariado.
[6] Marx colocava a existência da extração de mais-valor absoluto (fundado na extensão da jornada de trabalho) e da extração de mais-valor relativo (fundado na produtividade, isto é, na produção realizada numa determinada jornada de trabalho), no qual um aumentava ou diminuía com de acordo com a extensão da jornada de trabalho (a diminuição da jornada de trabalho para 08 horas significou, portanto, diminuição da extração de mais-valor absoluto) ou com a intensidade da produção nesta jornada de trabalho (em uma jornada de trabalho de oito horas, se a produção aumenta, então há um aumento de extração de mais-valor relativo).
[7] Esta mudança atinge a todas as instâncias da vida social, ampliando a mercantilização das relações sociais, realizando uma contra-revolução cultural preventiva expressa no pós-estruturalismo em suas diversas manifestações, incluindo o “pós-marxismo”, “pós-colonialismo”, o “multiculturalismo”, etc. Cf. Viana, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
[8] O microrreformismo é a busca de reformas que só atendem demandas de determinados grupos sociais, sem interferir na macro-política ou em reformas sociais gerais, tal como propunha a antiga social-democracia. O microrreformismo se adéqua como uma luva nas políticas paliativas de assistência social do neoliberalismo, que evita reformas profundas ou grandes investimentos, tal como é o caso das políticas de cotas.