Seção 02:
A Autogestão das Lutas Operárias
A luta operária é
uma luta diária, cotidiana, que é travada contra a exploração e o trabalho
alienado. Os trabalhadores não controlam seu trabalho, não se realizam nele,
mas, pelo contrário, são coagidos, explorados, dominados. Assim, mesmo sem ter
consciência do processo de exploração, o proletariado luta. A luta se manifesta
sob as mais variadas formas, como absenteísmo, quebra de máquinas,
reivindicações, etc. Esta luta ou é espontânea ou é moderada e controlada por
entidades como sindicatos, partidos, Estado. Ela acompanha a história do
capitalismo e nunca deixa de existir.
Em certos
momentos históricos, há um avanço na luta operária: as lutas cotidianas se
tornam lutas autônomas. Os proletários se libertam das instituições que dizem
representá-los, radicalizam suas lutas, colocam reivindicações mais radicais.
Esta autonomização do proletariado é uma nova etapa da luta que pode marcar a
passagem para a terceira e fundamental fase: a das lutas autogestionárias. É
nesta passagem que se vê o embrião da nova sociedade, um desenvolvimento da
consciência revolucionária, um processo de auto-organização. E o movimento
operário realiza isto tudo através do movimento grevista.
Da Greve Geral aos Conselhos Operários
As greves surgem
e desaparecem. Elas são eleitorais, oportunistas, salariais, radicais. A greve
é um fenômeno complexo e sua realização possui várias determinações. No
entanto, deixando de lado o movimento grevista impulsionado pelas organizações
burocráticas como sindicatos, partidos, etc., temos uma ação proletária que
realiza uma mobilização e organização dos trabalhadores em determinada unidade
de produção ou categoria profissional. O movimento grevista surge como uma
forma de organização e despertar da consciência coletiva para as más condições
de trabalho, os baixos salários, protesto social, entre outros elementos.
As diversas
formas de paralisações da atividade laboral antes do advento da consolidação do
capitalismo moderno são antecedentes históricos das greves operárias. As
primeiras greves operárias – como não poderiam deixar de ser – provocavam uma
violenta reação estatal. Na França, as primeiras grandes greves dos mineiros
abriram brechas e em 1864 o direito de greve foi reconhecido. O movimento
grevista na França foi bastante forte durante o século 19. Neste período,
ocorriam greves corporativas, limitadas as determinadas categorias
profissionais (na França, os mineiros se destacavam). As greves logo deixam de
ser corporativas e passam a ser interprofissionais, sendo que estas passaram a
ocorrer em território nacional até se transformar em greve geral. Esta passagem
se deu pela solidariedade entre setores do proletariado ou por greves
políticas, exigindo ou combatendo determinadas medidas políticas.
A idéia de greve
geral já existia desde meados do século 19, mas somente no final desde século e
início do século 20 que ela se tornaria uma prática política do movimento
operário. As grandes greves deste período se espalharam pelo mundo, e tiveram
ressonância e influência na história do movimento operário, tal como as greves
na Bélgica, França e Rússia. No caso russo, durante a revolução de 1905, a
emergência dos conselhos operários (sovietes) é resultado do movimento
grevista. Este movimento continuou em escala mundial, atingindo inclusive
países mesmo de capitalismo retardatário, tal como a Hungria e o Brasil.
A partir de 1910
uma nova onda de greves assola a Europa, gerando conselhos operários e
acompanhando várias tentativas de revolução proletária, tal como no caso da
Alemanha, Itália, Rússia, Hungria, entre outros países. As derrotas das
tentativas de revolução proletária, a Segunda Guerra Mundial e a relativa
estabilidade do capitalismo dos países imperialistas promoveram um refluxo do
movimento grevista na Europa, mas manteve-se relativamente forte nos países de
capitalismo subordinado. Nos anos 60 houve uma retomada do movimento grevista
na Europa e em outros locais, mas ao mesmo tempo em que isto ocorria, a
ofensiva da classe capitalista após os anos 70 e o desemprego crescente também
promoveu um refluxo. A partir de então o movimento grevista passou a viver uma
situação de fortalecimento e enfraquecimento, assumindo formas esporádicas e
mais ou menos consolidadas dependendo da época e país.
A greve, enquanto
mera paralisação das atividades, expressa uma luta contra o capital, já que
compromete a extração de mais-valor. A extração do mais-valor é interrompida e
por isso esta é a forma mais eficiente de pressão operária sobre o capital. É
também por isso que as instituições que dizem representar os trabalhadores e,
no fundo, representam o capital, já não incentivam o movimento grevista e
quando podem evitam e desmobilizam as propostas e tentativas de greves. No
entanto, o movimento grevista pode, uma vez desencadeado, se radicalizar e se
tornar ainda mais perigoso para o capital. Trata-se da passagem para uma forma
mais radical de greve, a greve de ocupação. Nesta, os trabalhadores não apenas
paralisam as atividades, mas tomam conta das fábricas, das unidades de
produção, impedindo qualquer forma de abdicação ao movimento grevista e
reativação da produção. Os proletários realizam uma permanente mobilização,
comunicação, o que permite um avanço da consciência e a constituição de novas
relações sociais.
Este processo
culmina com a greve de ocupação ativa, uma radicalização e aprofundamento da
greve de ocupação, que marca já um passo rumo ao questionamento da propriedade
privada, das relações de produção capitalistas. Este processo de greve de
ocupação ativa exige, para significar um verdadeiro movimento revolucionário, a
generalização para um conjunto significativo de unidades de produção. Ao
ocorrer tal processo, ocorre, simultaneamente, uma forma superior de
auto-organização, a formação dos conselhos de fábrica. Os conselhos de fábrica
passam a gerir as fábricas e fazê-las funcionar de forma autogerida.
Esta ampliação da
auto-organização dos trabalhadores se expande para outros setores da sociedade,
tal como nos locais de moradia, estudo, etc. Surge, neste contexto,
simultaneamente, os conselhos de bairros e outras formas de auto-organização,
tal como os conselhos de segurança (milícias operárias). O processo de
generalização da greve de ocupação ativa e da formação de conselhos de fábrica
permite a articulação de diversas unidades produtivas em determinada cidade ou
região, através de sua articulação com os conselhos de bairros e outros tipos
de conselhos, criando os conselhos operários, a forma conselhista de autogestão
social que realiza a articulação da sociedade em escala geral.
Estado e Burocracia: O Véu da
Contra-Revolução
A burguesia é a
classe dominante e se caracteriza por se apropriar do mais-valor produzido pelo
proletariado. Assim, a classe capitalista, burguesa, e a classe operária,
proletária, são as duas classes sociais fundamentais do capitalismo, as classes
autênticas geradas pelo modo de produção capitalista. Porém, existem outras
classes sociais, oriundas de modos de produção não-capitalistas ou das formas
de regularização das relações sociais (doravante chamadas sinteticamente
“formas sociais”). A manutenção da dominação burguesa tem como suporte o Estado
capitalista, a principal forma de regularização das relações sociais no
capitalismo. Porém, o Estado capitalista não é dirigido, na maioria dos casos,
diretamente pela classe capitalista, e sim pela burocracia estatal.
O que é a
burocracia? É uma classe auxiliar da burguesia. A classe capitalista ao drenar
a produção de mais-valor acaba tendo que realizar a repartição do que foi
extorquido do proletariado. Além dos gastos de produção e com os salários dos
trabalhadores, a burguesia transfere parte do mais-valor para o Estado e para
sustentar suas classes sociais auxiliares. Estas executam trabalho improdutivo,
isto é, são trabalhadores assalariados improdutivos, não produzindo mais-valor
e tendo sua renda adquirida através do processo de exploração do proletariado,
através do salário pago pelo Estado ou por empresas capitalistas. A burocracia
estatal, os agentes que fazem a máquina do Estado funcionar, bem como outros
setores da burocracia (empresarial, partidária, sindical, etc.) é uma classe
social auxiliar da burguesia, executando o papel de controlar o proletariado,
amortecer os conflitos sociais e reproduzir a exploração.
A burocracia é
uma classe que se julga neutra. Isto ocorre devido a ela se aproximar da classe
capitalista pela sua cultura e rendimentos, embora se distinguindo por não ser
proprietária dos meios de produção, bem como se aproxima do proletariado pela
forma de sua remuneração, assalariada, mas se distingue dele por não ser um
grupo dirigido e sim dirigente, além da diferença de cultura e rendimentos. A
burocracia se divide em diversas frações e extratos e, devido a isso, algumas
estão mais próximas do proletariado (renda mais baixa, situação social
inferior) e outras mais próximas da burguesia, formando suas tendências mais
radicais e moderadas, respectivamente. No entanto, devido seu caráter de
classe, enquanto classe, a burocracia é contra-revolucionária, mesmo quando se
alia ao proletariado, pois neste caso quer ser dirigente do processo
revolucionário e assim reproduzir as relações dirigentes-dirigidos, tornando-se
uma nova classe dominante ou se metamorfoseando em burguesia de Estado. A burocracia
pode promover uma contra-revolução atuando “por cima” (a burocracia estatal
utilizando a repressão, a cooptação, e outros mecanismos inibidores da ação
revolucionária do proletariado) ou “por baixo” (os baixos extratos da
burocracia, mais radical e próxima do proletariado, que é gerada por partidos,
sindicatos, etc.) ao buscar dirigir o proletariado para tomar o poder estatal.
A burocracia
estatal, a mais poderosa fração da burocracia, é formada pelos quadros
dirigentes dos setores permanentes do Estado (exército, poder judiciário, aparato
estatal) e provisórios (governo) e se coloca numa posição de neutralidade,
reproduzindo a ideologia de que são “funcionários do universal”. Porém, o
Estado capitalista, assim como o Estado em geral, é, por natureza, contra-revolucionário.
A razão de ser do Estado é justamente a existência da luta de classes e por
isso ele é parte desta luta, estando sempre do lado da classe dominante. A
autonomização da burocracia estatal ou a tomada do poder do Estado por outros
setores da burocracia (partidária, sindical, etc.) significam nada mais nada
menos do que a realização da contra-revolução. Outros setores oriundos de
outras classes sociais, uma vez tomando o poder estatal, metamorfoseiam-se em
burocracia estatal e realizam a contra-revolução. Desta forma, a ideologia da
conquista do poder estatal pelo proletariado é contra-revolucionária. O Estado
não deve ser conquistado e sim destruído. A manutenção do Estado significa a
permanência da dominação e da exploração. A abolição do Estado é condição de
possibilidade da emancipação humana.
Das Lutas Espontâneas e
Autônomas às Lutas Autogestionárias
A luta operária é
uma luta cotidiana contra a burguesia. Tal luta se realiza no plano cultural,
através das contradições e resistências; nas fábricas, através do absenteísmo,
das diversas formas de manifestação das insatisfações, do desinteresse; nas
instituições burguesas, através de sua recusa passiva ou ativa; em todos os
momentos e locais. Mas esta é uma luta que é limitada, pois falta consciência
revolucionária e auto-organização. Esta forma de luta não ultrapassa o poder
burguês, apenas coloca alguns limites a ele, que, dependendo do contexto, da
época e lugar, é algo bastante limitado. Ela não interfere na acumulação
capitalista, não corroí o poder estatal, não questiona as relações de produção
capitalistas diretamente, não constitui uma associação operária, etc. Apesar
disso é uma forma de luta e resistência que acompanha toda a história do
capitalismo e a cotidianidade na sociedade burguesa. As lutas espontâneas
expressam o primeiro estágio das lutas operárias contra o capital, que ocorre
na instância da produção e em todas as demais instâncias da vida social, mas
que não ultrapassa a dominação capitalista. Historicamente, esta primeira e
elementar fase da luta operária é substituída pelas lutas autônomas e,
posteriormente, pelas lutas autogestionárias[1].
Esta fase de
lutas espontâneas é superada quando há a passagem para formas de lutas mais radicais,
as lutas autônomas. Durante as lutas autônomas, a classe operária toma a
iniciativa em suas mãos e dispensa a mediação burocrática de partidos e
sindicatos. Ela expressa uma radicalização do movimento operário. A força
coletiva do proletariado se manifesta, criando formas coletivas de ação e
consciência através da greve, do comitê de greve, do piquete, do panfleto.
Porém, ainda não se trata de luta revolucionária, embora tenha avançado para
uma forma mais consciente, coletiva. Já manifesta uma recusa do capital e da
burocracia. A derrota, no entanto, marca a volta à normalidade capitalista. É
uma ação revolucionária sem consciência revolucionária.
A fase das lutas autônomas
é substituída por uma nova fase das lutas operárias, as lutas autogestionárias.
Esta fase marca um avanço na ação, que se torna mais radical; na consciência,
que se torna revolucionária; e na auto-organização, que se desenvolve, criando
a associação operária sob a forma de conselhos, comunas, etc. A hegemonia
revolucionária do proletariado se expande por toda a sociedade e o objetivo de
transformar radicalmente as relações sociais se consolida nas mentes dos
indivíduos das classes exploradas. A autogestão das lutas ocorre
concomitantemente com a autogestão das fábricas, lojas, empresas, bairros,
escolas, etc. A recusa do capital, do Estado, da burocracia partidária se torna
uma realidade concreta.
A classe
dominante busca manter a classe operária e os demais setores da sociedade ao
nível das lutas espontâneas. Isto é reforçado por indivíduos que encontram
dificuldades de ultrapassar esta fase, bem como forças políticas e a burocracia
partidária/sindical que busca impedir a radicalização e autonomização do
movimento operário para manter seu controle e poder.
Quando estas são
substituídas pelas lutas autônomas, o capital busca frear, controlar, combater,
cooptar, corromper. A burocracia sindical e partidária se opõe, tenta recuperar
o controle. No plano cultural, tanto a classe dominante quanto a burocracia
buscam frear o movimento operário e a consciência de indivíduos e grupos. É por
isso que a tendência natural das lutas operárias é obstaculizada pela ação das
classes opostas e que as lutas espontâneas não se transformam constantemente em
lutas autônomas. Quando existe a ameaça de passagem de lutas autônomas para
lutas autogestionárias, a classe capitalista e a burocracia buscam frear a
passagem, através de ideologias, falsas promessas, concessões. Alguns
indivíduos proletários e ativistas políticos não ultrapassam o nível das lutas
autônomas, não buscam radicalizá-las e passam a idealizar esta fase ascendente,
mas ainda limitada da luta operária, congelando-a, e, assim, contribuindo com
as forças conservadoras.
Quando as lutas autônomas
são substituídas pelas lutas autogestionárias, o conflito se torna mais grave,
a guerra civil oculta se transforma visivelmente em guerra civil aberta e ambos
os lados radicalizam suas ações e a vitória da classe capitalista ou da
burocracia significa a contra-revolução, enquanto que a vitória da classe
operária significa a instauração da autogestão social.
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