Seção 5
A Sociedade Autogerida
Os utopistas da
época de nascimento do pensamento socialista foram duramente criticados por
Marx. A sociedade do futuro não é resultado dos planos dos reformadores sociais
de hoje. O comunismo é um “movimento real”, cuja base é o movimento operário,
suas lutas e constituição de novas relações sociais, e não produto da
imaginação criadora dos intelectuais. Os utopistas cometeram dois erros
fundamentais: um foi produzir projetos de sociedade sem identificar e reconhecer
quem seriam os agentes concretos que realizariam tal projeto e que, por
conseguinte, deveriam ser a fonte da inspiração para pensar o próprio projeto. O
outro foi a falta de percepção mais aprofundada sobre o processo de
transformação, a passagem da sociedade atual para a sociedade futura, ou uma percepção
mais aprofundada ingênua deste processo, através de reformas, educação, razão,
etc., abolindo a base social do processo de transformação, as relações sociais
concretas, as lutas e interesses, entre as classes sociais. Os planos
detalhados que apresentavam o funcionamento da futura sociedade
pós-capitalista, tal como os 700 tipos de falanstérios propostos por Charles
Fourier, não tinham base concreta.
A partir disto,
muitos “marxistas” passaram a recusar totalmente qualquer discussão sobre o
caráter da sociedade futura, taxando como utopismo qualquer tentativa neste
sentido. A posição de Marx, no entanto, era diferente. Sendo o comunismo um
movimento real, realizado por pessoas concretas, fundamentalmente o movimento
operário, é possível apontar alguns aspectos sobre a organização da sociedade
do futuro. Com o decorrer do tempo, através das experiências de tentativas de
revolução proletária, a visibilidade de algumas características da sociedade do
futuro se torna mais apreensível, sendo produto das lutas históricas do
proletariado e não idéias arbitrárias inventadas por planejadores e pensadores.
Marx fez diversos apontamentos sobre a futura sociedade comunista, se baseando
na experiência histórica do movimento operário, tal como a Comuna de Paris, e
nas necessidades criadas por uma sociedade pós-capitalista, tal como a abolição
do dinheiro.
As reflexões de Marx
sobre a futura sociedade comunista foram esquecidas e abandonadas por diversos
motivos. O principal deles foi a contradição entre tais reflexões e o
capitalismo estatal soviético, que passou a “monopolizar” a concepção de
socialismo. O bolchevismo ofuscou o caráter autogestionário das teses de Marx,
tal como havia já esboçado a social-democracia, irmã gêmea do leninismo, que
combatia os “aspectos utópicos” da teoria marxista. Outra razão é a pouca
leitura da obra de Marx ou concepções pré-definidas a partir da influência do
bolchevismo ou a simples existência do capitalismo estatal russo (principalmente
conservadores que querem refutar Marx e deslocam a discussão para a antiga
União Soviética ao invés dos seus escritos).
Assim, Marx fez
reflexões importantes sobre a futura sociedade comunista. A partir da
experiência da Comuna de Paris, primeiro esboço de autogestão social da
história, ele e outros pensadores colocaram em termos históricos e concretos a concepção
da nova sociedade. O século 20 passou a ter inúmeras outras experiências
autogestionárias através das tentativas de revolução proletária que motivaram
não somente vários escritos sobre a concepção de Marx como dos processos
históricos e, ainda, da extração de formas de organização e existência da
sociedade futura a partir destas experiências[1].
Hoje é possível
apresentar um quadro geral, baseando-se nas experiências históricas e idéias
derivadas delas, pensar alguns elementos básicos da futura sociedade
autogerida. Isto é ainda mais necessário para ampliar a consciência de que o
comunismo nada tem a ver com as experiências na URSS, Leste Europeu, Cuba,
China e demais países, que instauraram um capitalismo de Estado sob o nome de
socialismo, através de uma contra-revolução burocrática. A necessidade da
utopia, tal como coloca Ernst Bloch[2],
é fundamental, desde que seja uma utopia concreta, realizável. Além disso, não
pensar a futura sociedade pós-capitalista abre espaço para não se perceber a
radicalidade da transformação social e, por conseguinte, abrir espaço para se
pensar o comunismo como um “capitalismo reformado” ou “estatizado”. O combate
ao processo contra-revolucionário pressupõe um projeto de sociedade autogerida,
o que, por sua vez, influencia o desenvolvimento histórico[3].
Por isso encerraremos este manifesto com uma seção a respeito da futura
sociedade autogerida.
A Instauração da Autogestão Social
O comunismo só
pode ser compreendido como autogestão social. A autogestão surge no processo de
produção e deve se expandir para todas as outras instâncias da vida social
abolindo tanto o mercado (“lei do valor”) quanto o estado. A autogestão é,
assim, uma relação de produção e não como nas ideologias burguesas, mera forma
de gestão de empresas, ou simplesmente democracia direta. As organizações que
realizarão a substituição dos organismos do estado capitalista surgidos do
próprio processo revolucionário, tais como os conselhos de fábrica, conselhos
de bairros, etc., formando a base dos conselhos revolucionários que serão
responsáveis pela autogestão social.
Esses conselhos
se articularão a nível regional, formando os conselhos sociais de autogestão, e
através das demandas sociais regionais se efetuará a distribuição dos meios de
produção. As comunas revolucionárias cuidarão essencialmente da produção de
meios de consumo enquanto que as grandes indústrias produzirão essencialmente
meios de produção que serão distribuídos às comunas de acordo com o grau de
necessidade de cada uma.
O trabalho
socialmente necessário (grandes indústrias, serviços sociais, distribuição,
transporte, etc.) e o trabalho autônomo (meios de consumo, trabalho comunal em
geral, o que inclui lazer, meios de comunicação, etc.) serão executados pelas
mesmas pessoas. Ou seja, ao invés de haver uma divisão social do trabalho
haverá uma divisão temporal do trabalho.
O indivíduo irá dividir o seu tempo de trabalho visando executar tanto o trabalho
socialmente necessário quanto o trabalho autônomo.
As comunas
revolucionárias serão autogeridas pelos seus habitantes[4]
e a grande produção das indústrias, os serviços sociais, etc., serão dirigidos
pelos conselhos de fábricas e de trabalhadores. Embora a distribuição de
serviços e de bens de produção seja definida pela coletividade, ou seja, o
conjunto da sociedade define as prioridades e as demandas que devem ser
atendidas primeiramente de acordo com o grau de necessidade das comunas, o processo
de produção é autogerido pelos próprios trabalhadores nas unidades de produção,
nas fábricas, de acordo com as necessidades sociais. Porém, os indivíduos que
trabalham nas unidades de produção industrial e os que moram e produzem nas
comunas, são os mesmos, logo, não há contradição. A separação entre comuna e
unidade de produção industrial é apenas espacial, já que facilita o processo de
produção e utiliza as empresas herdadas da sociedade anterior, e se refere ao
que é produzido, ou seja, meios de produção. Com o desenvolvimento histórico da
sociedade autogerida, este processo poderá mudar ou ser abolido, o que não é
possível prever na atualidade.
Tanto o trabalho
socialmente determinado quanto o trabalho autônomo não serão remunerados. O
primeiro será retribuído em meios de produção cedidos à comuna onde reside o
produtor ou em serviços sociais que atendam a ela; o segundo será retribuído em
meios de consumo produzidos coletivamente na comuna e o tempo disponível do
produtor poderá ser utilizado tanto para a livre
produção de bens quanto de artes, cultura, lazer, etc.
É claro que a
instauração da autogestão social apresentará diferenças dependendo do país em
que ela for implantada. Haverá mais ou menos dificuldades dependendo do grau de
desenvolvimento das forças produtivas. No caso dos países superdesenvolvidos da
Europa Ocidental, calcula-se que o trabalho socialmente necessário seria
executado numa sociedade autogerida, em aproximadamente duas horas[5].
Nos demais países poderá haver uma maior carga horária de trabalho socialmente
necessário, que vai variar inclusive de acordo com a decisão coletiva, pois as
necessidades, com exceção das necessidades primárias, são determinadas
socialmente. No caso da sociedade brasileira e em sociedades que vivem sob o
capitalismo subordinado, consideramos que é necessário tomar algumas medidas
que impeçam concessões contra-revolucionárias e contra-revolução juntamente com
outras que viabilizem as melhores condições possíveis para garantir, já no
período de guerra civil aberta, autogestão e seu aperfeiçoamento contínuo.
Neste sentido, consideramos necessárias as seguintes medidas.
1) socialização
dos meios de produção através da autogestão coletiva nas unidades de produção;
2) socialização
dos meios de distribuição através da autogestão coletiva nas comunas
revolucionárias;
3) Socialização
dos meios de administração, comunicação, educação, diversão, produção cultural,
repressão, etc., através da autogestão coletiva da coletividade (conselhos revolucionários);
4) Formação de
comunas revolucionárias que executarão a produção de meios de consumo, cultura,
etc., e também cuidarão da segurança comunal contra as ações
contra-revolucionárias;
5) Os meios de
produção, a produção e a distribuição comunais serão autogeridas pelos próprios
integrantes da comuna;
6) Abolição total
do capital, da propriedade privada, do estado, do dinheiro e do mercado e
instituição da planificação autogerida da comunidade;
7) Coletivização
das terras e meios de produção no campo através da autogestão coletiva dos
trabalhadores rurais;
8) Desurbanização
ambiental dos grandes centros urbanos e desruralização das zonas produtivas
rurais e, conseqüentemente, abolição da oposição entre cidade e campo;
9) Abolição de
todas as hierarquias sociais, implantação de uma igualdade efetiva entre os
sexos, raças, etnias, as culturas, etc., e criação, em cada comuna
revolucionária, de conselhos de proteção aos impossibilitados de trabalhar
(crianças, idosos, deficientes físicos, etc.);
10) Incentivo ao desencadeamento do processo
revolucionário em todos dos países do mundo e apoio a todas as tentativas de
revolução proletária no mundo.
O Modo de Produção Comunista
O Modo de
Produção Comunista ainda não existe, mas já conheceu vários esboços e foi
objeto de reflexão por vários indivíduos e coletivos. As relações de produção e
distribuição são radicalmente distintas das existentes em modos de produção
anteriores, fundados na divisão de classes. A base da divisão de classes é a
divisão social do trabalho, e o modo de produção comunista realiza a abolição
desta divisão. Não existem proprietários e não-proprietários, produtores e
não-produtores. A abolição da propriedade privada e da burocracia ocorre com a
emergência da autogestão como relação de produção, no qual os meios de produção
são pertencentes à coletividade, bem como os bens produzidos, não sendo
propriedade individual ou grupal. A organização da produção é realizada
partindo da autogestão social que coloca as prioridades e necessidades e
através da autogestão da fábrica pelo coletivo de autogestão da unidade de
produção.
A propriedade é
abolida, a terra, os meios de produção, as instalações, passam a pertencer à
coletividade e o uso é de acordo com a decisão coletiva ou uso livre em caso de
disponibilidade. As relações de trabalho não se caracterizam por uma oposição
entre trabalhadores e não-trabalhadores nem entre pessoas especializadas no
trabalho industrial, manual, ou qualquer atividade restrita e especializada. Ao
contrário, todos os indivíduos executam diversas atividades, entre as quais as
que são componentes das necessidades coletivas, realizando o trabalho
socialmente necessário (distribuição, transporte coletivo, serviço de saúde,
produção industrial, etc.) quanto das necessidades comunais (consumo, lazer,
etc.) e individuais (desenvolvimento da criatividade, lazer, etc.), realizando
o trabalho autônomo. Ambas as formas de trabalho são organizadas a partir da
decisão coletiva, realizada via consulta coletiva nas comunas, conselhos de
fábrica, e uso de tecnologia para permitir as decisões relativas a grandes
espaços territoriais (com a abolição do Estado-Nação, a divisão territorial
serve apenas a fins organizativos, não existindo mais países e direitos
nacionais). As relações de distribuição são realizadas não através da posse dos
bens ou de decisões burocráticas e sim a partir da decisão coletiva através das
assembléias que busca atender as necessidades mais prementes da população.
A repartição dos
bens produzidos é igualitária e coletiva, sendo que, em determinados contextos
e situações, por necessidade, é possível, através da decisão coletiva,
direcionar maior parte dos bens produzidos ou dos esforços coletivos para
determinada região ou parte da população (em casos de acidentes naturais, por
exemplo). A repartição igualitária nas comunas é expressão das relações igualitárias
em todos os setores da vida social. A abolição da propriedade privada e, por
conseguinte, da idéia de propriedade privada e dos valores possessivos e
exclusivistas, propicia uma nova relação entre os seres humanos. A decisão
coletiva, além de ser expressão da população que ocorre sob novas bases
sociais, novos valores, novas relações cotidianas e novos objetivos e
interesses sociais, não é mais pautada na acumulação de riquezas e sim no
usufruto dos bens necessários.
O total da
produção deve proporcionar um excedente para ser utilizado em períodos que
imprevistos e acidentes ocorrerem que forma o fundo de reserva. Além do fundo
de reserva é necessário um fundo de proteção social para pessoas
impossibilitadas, temporiaramente ou não, de trabalhar. O fundo de reserva e o
fundo de proteção social são autogeridos pela coletividade, tal como as
fábricas e as comunas.
A produção de
determinado território também pode produzir um excedente que é distribuído para
outros territórios que não produzem determinados produtos, bem como, em permuta,
recebe certos produtos que não produz. A organização deste processo se dá via decisão
coletiva através da comunicação global utilizando recursos tecnológicos. O
processo de socialização dos indivíduos já os prepara tanto para o uso destes
recursos tecnológicos de comunicação como também para entender o processo de
decisão coletiva e dos procedimentos envolvidos. A distribuição comunal é feita
através da decisão coletiva na comuna, mas a partir de certo estágio de
desenvolvimento, a tendência é ter um setor no interior da comuna, um armazém
coletivo, no qual se pode usufruir sem necessidade de consulta, a não ser que
por imprevistos ou acidentes haja escassez relativa, o que remete para a decisão
coletiva. A distribuição territorial ocorre via decisão coletiva tomando como
base fundamental as necessidades coletivas. A distribuição interterritorial
ocorre da mesma forma, com algumas especificidades, inclusive oriundo das
distâncias espaciais.
Assim, a
sociedade dos trabalhadores, aqueles que trabalham e se realizam no trabalho,
tanto satisfazendo suas necessidades quanto através da própria satisfação do
trabalho não alienado, manifestação da objetivação, se torna uma sociedade de repartição
igualitária da produção coletiva.
As Formas Sociais Comunistas
Nas sociedades de
classes, o conflito entre as classes, os diversos interesses opostos e antagônicos,
a concentração da riqueza nas mãos da classe dominante e de suas classes
auxiliares, proporciona um conjunto de formas de regularização das relações
sociais que são repressivas, coercitivas, e que servem a determinados
interesses, dos dominantes e seus aliados, em detrimento de outros. O processo
de socialização é repressivo e coercitivo, surgem instituições voltadas para
controlar a população (o estado) ou instituições sociais específicas (hospício,
prisão, escola). A divisão social do trabalho cria um conjunto de instituições
e especialistas para sustentar as relações de exploração e dominação. Assim, as
formas sociais existem de forma separada do modo de produção, embora sejam
correspondentes e determinadas por ele.
No caso da
sociedade autogerida, novas relações sociais são instituídas e isto provoca
mudanças não apenas no modo de produção e distribuição dos bens materiais, mas
também em todas as demais relações sociais. A autogestão se generaliza em toda
a sociedade. Os aparatos repressivos e coercitivos são destruídos. O estado, a
escola, o aparato repressivo, são abolidos. Em seu lugar, surgem novas formas
sociais. A instituição da autogestão social no modo de produção, o que implica
na abolição da divisão social do trabalho e na decisão coletiva, marca também
uma profunda mudança nas formas sociais. A separação entre modo de produção e formas
sociais é apenas uma linha imaginária, pois a produção de bens materiais passa
a ser um processo cotidiano inseparável das demais atividades humanas.
As formas sociais,
tal como segurança coletiva (mais necessária no período revolucionário, devido
os resquícios de setores contra-revolucionários), educação, produção cultural,
etc. passam a ser descentralizados e autogeridos. A educação básica poderá
ocorrer na instância das relações familiares (principalmente com a liberação do
tempo de trabalho, a família poderá se dedicar mais ao processo de educação
infantil) e comunais. A educação mais técnica e teórica poderá ocorrer através
de conselhos educacionais, bem como em coletivos e grupos de estudos
instituídos livremente. A biblioteca comunitária, instituída a partir da abolição
das bibliotecas de instituições privadas e estatais e doações individuais e
expropriações de livrarias e editoras, que serão abolidas, passam a ser um
acervo cultural comunal e acessível a todos os interessados. A produção
intelectual, incluindo os livros, e sua divulgação, passa a ocorrer
coletivamente e de forma livre, bem como sua distribuição passa a depender dos
recursos tecnológicos e da demanda. Alguns setores do saber mais técnico ou que
pressupõe certo aprofundamento para obter eficácia, tal como a medicina, a
engenharia, pesquisa densa, passam a ter conselhos de formação ligados aos
coletivos de autogestão social, que, através da decisão coletiva, decidem as
prioridades e necessidades sociais, bem como contribuem com a pesquisa
individual.
Ao invés da moral
burguesa e da hipocrisia que lhe acompanha, uma ética humanista tende a se
generalizar numa sociedade de indivíduos livremente associados. Assim, as leis,
imposições morais, são substituídas pela ética humanista que se generaliza e se
torna consensual. Os conflitos individuais e coletivos são resolvidos no
contexto da autogestão social das relações sociais concretas e da nova cultura
e ética estabelecidas.
As diferenças
entre os sexos, raças, etnias, deixam de ser relações de opressão e passam a
ser relações igualitárias. A relação mulher-homem transforma-se radicalmente. Uma
nova socialização, fundada na abolição da divisão social do trabalho, no
controle total do tempo de trabalho fundado na dominação e exploração, a nova
cultura, as novas relações sociais generalizadas, tende a transformar
qualitativamente as relações entre os sexos. As novas relações sociais,
fundadas na solidariedade, na igualdade, na liberdade, são as bases das novas
relações entre os sexos. A abolição da repressão sexual, o fim da
mercantilização, da burocratização e da competição, entre outras mudanças, tendem
a abolir naturalmente a possessividade, a transformação da sexualidade em
mercadoria, os tabus introjetados pelos indivíduos, os problemas psíquicos
gerados pela repressão ou traumas por atos de violência executados. A
sexualidade deixa de ser vista como “pecado”, como algo a ser negado e, assim,
o retorno do reprimido manifesto pela hiper-sexualidade também desaparece. As
relações sexuais passam a ser produto do desenvolvimento individual normal e os
medos e temores proporcionados pela repressão ou pelos efeitos psíquicos dela,
deixam de existir. As formas sociais do erotismo deixam de ser comandadas pela
lógica da competição e relação com as aspirações da sociedade burguesa, bem
como o feiticismo é abolido[6].
O segredo sobre a vida sexual (e seus efeitos negativos) deixa de existir e em
seu lugar uma socialização natural toma lugar. Assim, relações autênticas,
fundadas em relações igualitárias e não por rígidos papéis sociais, se
instauram entre homens e mulheres, no conjunto das relações sociais.
As relações entre
as raças passam a ser igualitárias. O racismo e o preconceito deixam de existir
com a abolição da base social (competição social, mercantilização, conflito de
classes, etc.) que os produzem. As idéias de competição, superioridade, entre
outras, deixam de existir. Os seres humanos passam a se relacionar tendo como
base relações sociais fundadas na igualdade e liberdade e sob uma cultura
humanista. As relações entre as pessoas de originadas nas mais diversas
culturas (indígenas, orientais, ocidentais, etc.) também passam a ser regidas
pela igualdade e liberdade.
Estas e outras
relações sociais marcadas numa sociedade classista pelo conflito são
transformadas qualitativamente, criando um processo de relações igualitárias e
libertárias no conjunto da vida social. Isto se reflete no processo de
socialização, na cultura, nos valores, nos sentimentos, nas relações cotidianas.
O indivíduo deixa
de ser apenas uma marionete das relações sociais repressoras e passa a possuir
uma autonomia muito maior, tal como nunca vista na história da humanidade. O
desenvolvimento do conjunto das potencialidades humanas, o desenvolvimento onilateral[7],
é realizado pelo indivíduo associado aos demais indivíduos. A criatividade e a
autenticidade passam a ser as formas de manifestação do indivíduo, junto com
outros indivíduos que, de forma colaborativa, também desenvolvem o mesmo
processo e todos se beneficiam reciprocamente da nova individualidade
existente. As pessoas portadoras de determinadas características psíquicas
(receptivas, acumulativas, competitivas, etc.)[8]
são substituídas por pessoas autônomas, autênticas, criativas. O fim da especialização
e a possibilidade de exercer inúmeras e diferentes atividades, bem como a
abolição da burocracia com seus entraves e a ampla liberdade tendem a
desenvolver indivíduos altamente criativos, principalmente com a liberdade
temporal instituída por uma sociedade autogerida e que atende suas necessidades
e não as necessidades de reprodução ampliada do capital. A produção teórica e
artística ganha uma nova dimensão. A arte deixa de ser produto de agentes
especializados e passa a ser produto de todos os indivíduos e perde o seu
critério tecnicista, ganhando nova amplitude. O mesmo ocorre na produção
teórica e tecnológica. A auto-educação passa a ser uma prática constante desde
a infância e se desenvolve de forma a permitir ao indivíduo desenvolvimento
suas potencialidades através da livre associação com os demais seres humanos.
Neste processo, o
desenvolvimento da produção teórica e tecnológica tende a se tornar
extremamente ampliado. O desenvolvimento teórico tende a se expandir por vários
motivos. Os obstáculos proporcionados pela mentalidade burguesa e pelo controle
do saber através de instituições, regras formais, etc., são abolidos; a
criatividade passa a ser algo natural; o trabalho coletivo e associado se torna
muito mais natural e cotidiano, já que os obstáculos da competição, direitos
autorais, entre outros, são abolidos. O desenvolvimento tecnológico, por sua
vez, através da produção de tecnologia convivencial[9],
deixa de ser um objetivo em si ou para reproduzir o capital, perdendo o ritmo
acelerado, e passa a estar ligado às necessidades humanas, no interior de
relações sociais igualitárias[10].
O desenvolvimento
do comunismo, isto é, da sociedade autogerida, possui ritmo próprio, e a
comparação entre o seu ritmo e o da sociedade capitalista não tem sentido. Além
disso, o ritmo alucinante do capitalismo não trouxe felicidade e nem avanços em
sentido mais geral, mesmo no que se refere à tecnologia. Tal comparação já
revela valores (o do progresso, por exemplo, uma ideologia burguesa) e
incapacidade de pensar o novo ou quando busca pensar o novo reproduz o velho, devido
ao uso das categorias e concepções da sociedade atual. Tal como colocou Marx, a
história da humanidade deixa de ser produto de revoluções e passa a ser um
processo evolutivo comandado conscientemente pela humanidade. O ritmo do
capital ou das lutas de classes é substituído pelo ritmo das necessidades
humanas e da decisão coletiva.
Estes
apontamentos sobre a sociedade autogerida fornecem uma concepção geral das
relações sociais na nova sociedade. Este é o plano geral, o objetivo que todo
militante autogestionário deveria almejar. Portanto, é necessário lutar por sua
concretização, que significa a libertação humana. Somente através da associação
(auto-organização) e do desenvolvimento de uma consciência revolucionária a
nível mundial é que isto poderá ocorrer. A luta autogestionária é o meio e já é
o esboço da realização de novas relações sociais. Então, só nos resta lutar
através de uma associação revolucionária buscando a libertação humana.
[1] As
experiências históricas de autogestão social foram várias, sendo que a primeira
e uma das mais importantes foi a Comuna de Paris, mas também as tentativas de
revolução na Rússia, Alemanha, Espanha, também são importantes exemplos
históricos de experiências autogestionárias. Em matéria de teoria, existem as
teses anarquistas, algumas problemáticas, tal como a do anarco-sindicalismo –
que toma uma instituição da sociedade burguesa, os sindicatos, como organização
da transformação social e de reorganização da futura sociedade fundada na
anarquia – bem como existem propostas anarquistas mais conseqüentes, como a de
Diego Abad Santillán (Santillán,
D. A. Organismo Econômico da Revolução. A
Autogestão na Revolução Espanhola. São Paulo, Brasiliense, 1980). As obras
incipientes de Proudhon, Owen e outros também são úteis. No entanto, a teoria
da autogestão que se esboça em Marx (veja A
Guerra Civil na França e Crítica ao
Programa de Gotha) foi melhor desenvolvida pelos comunistas conselhistas,
especialmente Pannekoek (A Luta Operária.
Coimbra, Centelha, 1976; A Tarefa dos
Conselhos Operários. Coimbra, Centelha, 1976, que constituem os principais
capítulos de sua grande obra, Os
Conselhos Operários, ainda sem tradução completa para a língua portuguesa),
mas também o texto do GIK – os comunistas internacionalistas da Holanda,
comunismo de conselhos –, a respeito do modo de produção e distribuição
comunistas, e, mais recentemente, as teses de André Gorz (Gorz, A. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro, Forense, 1982), apesar de
suas inúmeras limitações e problemas, e as de Guillerm e Bourdet (Guillerm, A. e Bourdet, Y. Autogestão:
Mudança Radical. Rio de Janeiro, Zahar, 1976). Ao lado destas obras, várias
outras poderiam ser citadas e colaboram com a formação de um projeto de
sociedade autogerida.
[2]
Ernst Bloch é um dos autores marxistas mais importantes do século 20 e uma de
suas principais contribuições está em sua teoria da utopia. Há uma boa
introdução à sua obra: Bicca, L. Marxismo e Liberdade. São Paulo, Edições
Loyola, 1988.
[3] As
idéias, tal como coloca Korsch (Korsch,
Karl. Marxismo e Filosofia. Porto,
Afrontamento, 1977) fazem parte da totalidade social e a influencia. Assim, a
luta cultural contra o capitalismo também deve apresentar propostas para a
sociedade futura, desde que não caia no utopismo abstrato ou seja feito em
bases metafísicas e individualistas.
[4]
Isto quer dizer que a separação capitalista entre unidade de produção e unidade
doméstica (voltada para o consumo, o que se relaciona, por sua vez, com a
subordinação da mulher) é abolida nas comunas revolucionárias.
[5]
Cf. Gorz, André. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro,
Forense, 1982. É preciso ter em vista também que grande parte da produção
existente no mundo, inclusive no capitalismo subordinado, é supérflua ou
desnecessária, ou apenas necessária para a reprodução ampliada do capital. Com
a instauração da autogestão social, há a abolição da indústria bélica,
exército, produção de produtos descartáveis, etc., bem como mudança na produção
de bens de consumo, que passam a seguir não a lógica da mercadoria que deve ser
desgastada rapidamente para gerar novo consumo, e sim de bens com a maior
durabilidade possível e não descartáveis, o que é benéfico também para o meio
ambiente.
[6]
Aqui utilizamos feiticismo em lugar de fetichismo, por estarmos utilizando a
categoria psicanalítica e não a marxista e assim, embora no sentido comum sejam
palavras sinônimas, existe uma diferença entre o sentido psicanalítico e
marxista. O feiticismo significa transformar objetos ou outros elementos
(roupas, partes do corpo humano) em “objetos de desejo”, o que não significa
concordar com a tese freudiana que explica a razão de ser deste fenômeno.
[7] A
idéia do ser humano onilateral é desenvolvida por Marx, cuja realização se
daria na sociedade comunista.
[8]
Tal como se vê na tipologia do caráter de Erich Fromm (cf. Fromm, E. Análise do Homem. 10ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1978). Estas
são características da mentalidade burguesa, produtos da sociabilidade
capitalista (cf. Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital.
Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo,
Escuta, 2008).
[9] A
tecnologia convivencial é aquela na os seres humanos dominam as máquinas em
relações sociais igualitárias, o que pressupõe o domínio da livre associação
dos produtores sobre as máquinas, seus objetivos, suas características e suas
potencialidades. Portanto, utilizamos aqui a expressão convivencial num sentido
próximo ao fornecido por Ivan Illich.
[10] A
técnica, a tecnologia, as forças produtivas em geral, não são neutras. É por
isso que parte das forças produtivas produzidas pelo capitalismo irá perder sua
razão de ser na sociedade autogerida, já que são constituídas tendo por
objetivo a reprodução do capital; parte destas forças produtivas deverá ser adaptada;
outra parte poderá ser utilizada sem grandes problemas; e novas forças
produtivas deverão ser constituídas. A ideologia e mentalidade dominantes
pregam a necessidade de um desenvolvimento acelerado das forças produtivas,
embora nunca expliquem que isto é uma necessidade do capital e não dos seres
humanos, muito pouco beneficiados com isto. A velocidade do desenvolvimento das
forças produtivas depende das necessidades sociais e, por isto, em alguns
casos, irá ter um rápido e acelerado desenvolvimento, enquanto que em outros
mais lento. Assim, a dinâmica do capital com sua necessidade de reprodução
ampliada e consumismo é substituída pela dinâmica das necessidades sociais.
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