sábado, 6 de agosto de 2016

Manifesto Autogestionário: um plágio criativo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels

Resenha: VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008 

Manifesto Autogestionário: um plágio criativo do Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels

Lucas Maia Dos Santos∗ 

160 anos separam o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels do Manifesto Autogestionário de Nildo Viana. O manifesto dos autores alemães é sem sombra de dúvidas um pequeno texto que vale por obras inteiras. O texto de Nildo Viana é um plágio do velho manifesto ou como o autor mesmo diz: “é um plágio de um plágio”, pois Marx e Engels são acusados de plagiarem o Manifesto da Democracia de Victor Considerant. Marx e Engels teriam plagiado Considerant? Nildo Viana afirma peremptoriamente que não, pois embora haja algumas semelhanças formais em ambos os textos, as teses defendidas no Manifesto do Partido Comunista não se encontram no Manifesto da Democracia. 

Os prefácios feitos por Marx e Engels às sucessivas edições do Manifesto do Partido Comunista demonstram uma preocupação dos autores em ressaltar que as teses ali expostas não são um catecismo que deva ser seguido ad eternum. O revolucionário que de fato queira compreender o processo histórico e de alguma maneira contribuir com a transformação social, deve cotidianamente preocupar-se em analisar concretamente as condições históricas dadas. Não basta apreender um conjunto de postulados e aplicá-los indefinidamente em qualquer situação e contexto histórico. Não há nada mais idealista que tal procedimento. 

O Manifesto da Liga dos Comunistas de 1848 é a expressão mais clara de uma nova concepção da história, que considera os processos reais analisados de uma maneira concreta, ou seja, que ambiciona encontrar as múltiplas determinações que explicam a realidade. Marx e Engels demonstraram que a alavanca da história é a luta de classes. A luta entre senhores de escravos e escravos no modo de produção escravista da antiguidade, a luta secular entre senhores feudais e servos no modo de produção feudal e por último, a dramática guerra civil, ora oculta ora declarada, entre burgueses e proletários trouxeram a humanidade aos nossos dias. 

O que o Manifesto do Partido Comunista representa é justamente um programa prático que expressa uma concepção revolucionária. Neste texto está contido a concepção do desenvolvimento histórico entendida de um ponto de vista materialista, a relação dos comunistas com a classe operária e a posição dos comunistas diante das demais tendências oposicionistas e da literatura socialista existente até aquele período. Para demonstrar como entendem o processo histórico, afirmam: “A história de toda sociedade até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Isto coloca o proletariado na pauta das discussões, pois sendo ele produto genuíno desta sociedade, a ele também cabe o papel histórico de abolição das relações sociais existentes. É com base nisto que afirmam que o papel dos comunistas não é o de dirigir a classe operária rumo à revolução, pois segundo entendem, os comunistas não ∗ Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Goiás e professor da rede municipal de ensino de Goiânia. são um partido a parte, separado da classe operária, são simplesmente a fração mais resoluta do proletariado. Apresentam em relação a este a vantagem de terem consciência dos fins da luta ao passo que os proletários em geral só adquirem consciência destes fins durante o processo de luta e principalmente nos momentos mais radicais desta verdadeira guerra civil – a luta de classes. É por esta razão que terminam o texto com a célebre frase: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”! 

Se em linhas gerais, o Manifesto de 1848 continua atualíssimo, pois a sociedade capitalista ainda merece ser destruída, pois o proletariado ainda é o verdadeiro sujeito da revolução, pois os comunistas continuam a existir etc., não é menos verdade que a sociedade transformou-se consideravelmente de lá para cá. Sendo, portanto, coerente com os princípios do materialismo histórico, nada mais adequado do que realizar uma atualização deste manifesto. 

O materialismo histórico-dialético é um método vivo, posto que expressão concreta do movimento do mundo. Aplicando-o ao estudo de realidades concretas, produzimos interpretações teóricas destas realidades. Uma teoria é um conjunto de conceitos e categorias articulados num processo coerente de explicação da realidade. A teoria visa explicar. Sendo expressão explicativa do mundo, ela ajuda a contribuir com o processo de transformação e também permite clarear melhor as nuances do processo revolucionário, sendo importante arma no combate à contra-revolução (seja ela burocrática ou burguesa). Esta teoria deve ser constantemente submetida à análise e reanálise, deve estar sempre com os olhos voltados para o mundo, deve sempre explicá-lo. Se assim não o for, torna-se ideologia, ou seja, uma visão invertida da realidade, uma falsa consciência. 

O marxismo, de teoria revolucionária, tornou-se durante o século 20 um conjunto de ideologias tão díspares e ao mesmo tempo tão distantes do marxismo que a utilização deste termo para qualificá-lo enquanto tal ficou bastante problemática. Foi o que o que ocorreu com a social democracia, com o leninismo e todas as suas variações (stalinismo, trotskismo, maoísmo etc.), com a fusão do “marxismo” com ideologias científicas (estruturalismo, fenomenologia etc.) dentre outras possibilidades de deformação. Por isto, a teoria revolucionária, ou seja, o marxismo, deve explicar o mundo e por causa disto deve ser a crítica radical de toda e qualquer ideologia já existente ou que venha a ser produzida. 

Por isto, Nildo Viana se coloca nesta difícil e ao mesmo tempo instigante tarefa de “atualizar” o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. O desafio já começa com a preocupação terminológica. O termo comunismo se prestou a tantas barbáries e tantas confusões na longa história das lutas operárias do século 20 que de um conceito que visava e expressava o processo revolucionário, tornou-se um grande monstro que justificava as mais gigantescas burocracias (União Soviética, China, Cuba etc.). Tornou-se um conceito que estava articulado a uma ideologia que utilizava uma fraseologia “marxista”, mas que na verdade era somente uma forma de dominação da burocracia. A disseminação da idéia de comunismo como vinculada aos partidos bolcheviques presta-se à edificação de grandes confusões: onde antes tinha-se revolução, agora tem-se contra-revolução burocrática, onde antes tinha-se um “sonhar para frente”, para utilizar expressão de Ernst Bloch, agora tem-se um eterno retorno das sombras do passado. Assim, o Manifesto do Partido Comunista torna-se no seu plágio contemporâneo o Manifesto Autogestionário. Mata-se dois coelhos com uma cajadada só: abandona-se o uso da confusa expressão “comunismo” e da palavra “partido”. Embora Marx e Engels desse um sentido diferente à palavra partido, ou seja, aqueles que tomam partido, que tomam parte, que se posicionam como comunistas, com o desenvolvimento das burocracias partidárias e da “democracia burguesa” torna-se um termo que presta-se à confusão e não à explicação. 

Formalmente, o Manifesto Autogestionário segue a mesma lógica do Manifesto do Partido Comunista. Apresenta, na seção 1, a luta entre burgueses e proletários, denominando-a de “A burguesia e o proletariado: a dinâmica da luta entre trabalho morto e trabalho vivo”. Esta é a parte mais difícil de ser atualizada, pois trata da essência do modo de produção capitalista. Por esta razão, as modificações que sofreu são mais formais e conjunturais. A preocupação centra-se então em precisão terminológica. A burguesia, fulcro dominante da exploração capitalista representa o trabalho morto, fruto da exploração, merecendo, portanto, ser sumariamente abolida enquanto classe. O proletariado, por sua vez é o trabalho vivo, o centro da criação e da criatividade. Por este motivo, a ele cabe a difícil tarefa de destruir o capitalismo e construir a autogestão social. 

Na seção 2, “A autogestão das lutas operárias”, é apresentada a pré-condição sem a qual qualquer revolução proletária torna-se impossível: a autogestão das lutas. O que precisamente significa isto? Nada mais nada menos que “a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores” como disse Marx na introdução aos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores, a primeira Internacional. No período em que o Manifesto do Partido Comunista foi redigido, a luta proletária era ainda inaugural, na Alemanha e em alguns países, a burguesia ainda lutava contra os senhores feudais, o proletariado ainda não tinha as ferramentas necessárias para derrubar a burguesia como um todo, mas mesmo assim, as jornadas de fevereiro de 1848 assustaram a classe burguesa que se consolidava. 23 anos depois, no ano de 1871, em Paris, o proletariado mostra sua verdadeira face à burguesia e a classe dominante treme diante daquela insurreição. A Comuna de Paris, como a primeira experiência histórica do proletariado enquanto classe para si, ou seja, que expressa seus interesses de classe, levam Marx e Engels a fazer uma pequena “correção” em seu Manifesto. No prefácio de 1872, afirmam que o proletariado não pode direcionar suas lutas para a conquista do poder de estado, como haviam afirmado em 1848, mas sim que deve aboli-lo imediatamente com a intenção de criar o autogoverno dos produtores. A Comuna de Paris seria a forma finalmente encontrada de uma associação verdadeiramente livre de produtores. 

Várias outras experiências se sucederam após a Comuna: as revoluções russas de 1905 e 1917, as tentativas de revolução na Alemanha, Itália, Hungria etc. no período de 1918 a 1923, a tentativa de revolução na Hungria e França em 1956, o maio de 1968 francês, as greves selvagens na Europa na década de 1970, a formação de Conselhos operários na Polônia em 1980 etc. Mais recentemente, algumas experiências limitadas na Argentina em 2001 com a criação das assembléias de bairros e o movimento piquetero, a experiência de Oaxaca no México etc. demonstram que as lutas operárias não acabaram, mas que pelo contrário, expandiram-se para o mundo inteiro, posto que o capitalismo estende hoje seus tentáculos a todos os lugares. 

Além destas experiências históricas aqui citadas e inúmeras outras que não foram destacadas, alia-se toda a produção cultural ligadas a elas. Destaco o Comunismo de Conselhos desenvolvido por entre outros: Karl Korsch, Otho Rhüle, Anton Pannekoek, Herman Gorter, etc. O Comunismo de Conselhos, que se consolida na segunda metade da década de 1920 é a expressão teórica mais desenvolvida da classe operária até então. Desenvolveu até as últimas conseqüências a idéia de classe operária para si, vendo nos conselhos operários a forma e o princípio geral de organização das lutas operárias na sociedade capitalista bem como a forma e o princípio de auto-organização da sociedade futura. 

É com base nestas experiências históricas e, entre outras concepções, mas principalmente o Comunismo de Conselhos, que Nildo Viana coloca no primeiro plano a necessidade de autogestão das lutas operárias, pois é através delas que se criam as condições materiais de se abolir as organizações burocráticas: partidos (todos), sindicatos (todos), estado (todos). Além disso, os conselhos operários são a organização necessária para auto-educação do proletariado, tanto no seu processo de luta contra a burguesia e a burocracia, mas principalmente na sua maior tarefa, ou seja, reorganizar e gerir a futura sociedade. 

A seção 3, “As tarefas dos militantes autogestionários – estratégia revolucionária”, é exclusivamente dedicada ao papel dos militantes revolucionários. Os grupos e os militantes revolucionários não são a “vanguarda” da classe operária. Aos grupos revolucionários não compete dirigir a classe, determinar os rumos e os ritmos das atividades da classe. Também não é uma ação revolucionária ficar nos limites das lutas reivindicativas do proletariado. Assim, uma grande contribuição dos militantes é a luta cultural, ou seja, produção de uma interpretação teórica profunda da realidade, crítica implacável de toda e qualquer ideologia, ou seja, tudo aquilo que contribua com o avanço da consciência revolucionária. 

A única estratégia verdadeiramente revolucionária dos militantes autogestionários é contribuir com a auto-emancipação do proletariado: “O papel dos militantes autogestionários é, envolvidos na dinâmica da luta operária, acelerar o processo revolucionário e reforçar as condições necessárias para a vitória do proletariado. É necessário desencadear uma intensa luta cultural e política com o objetivo de jogar as massas na luta direta pela sua emancipação e criar a ação revolucionária das classes exploradas” (Viana, 2008, p. 35). Assim, ao militante não cabe ficar sentado no sofá da sala assistindo TV, como também não é revolucionário ser “vanguarda”, da mesma forma que é contra-revolucionário ficar no nível das lutas espontâneas e autônomas. A única estratégia revolucionária é articular os fins da luta (a autogestão social) com os meios (a autogestão das lutas). Esta estratégia visa avançar sempre a luta dos estágios espontâneo e autônomo para uma luta autogestionária, o terceiro e o mais radical estágio da luta operária. 

Na seção 4, “Posição diante das demais tendências oposicionistas”, faz uma crítica às concepções ditas de esquerda. Define como tendência oposicionista os grupos e indivíduos que se opõem ao capitalismo ou a governos estabelecidos tanto no plano teórico quanto prático. Cada uma das tendências tem uma base social definida: intelligentsia, burocracia, jovens estudantes etc. podendo ter em uma tendência mais de uma destas. Critica-se o pseudomarxismo acadêmico, o pseudomarxismo reformista, o pseudomarxismo bolchevista, o sindicalismo, o “socialismo” individualista, o “socialismo” filosófico, o “socialismo” romântico e o anarquismo dogmático. Com relação ao anarquismo, é necessário destacar que existe o anarquismo revolucionário. Esta, contrariamente às suas variantes dogmáticas, aponta para uma perspectiva verdadeiramente revolucionária. É uma doutrina com princípios revolucionários, mas sem uma teoria da história e do capitalismo. Alguns anarquistas assumem por isto a interpretação marxista do capitalismo e da história, ou seja, o materialismo histórico-dialético. 

A posição dos militantes autogestionários diante das tendências oposicionistas é variável. Com relação às tendências academicistas, sindicalistas, reformistas e bolchevistas, a relação deve ser de crítica, excetuando em casos raros e em conjunturas específicas nas quais seja possível “uma ação conjunta por questões pontuais”. Com relação às individualistas, românticas, filosóficas e dogmáticas, a relação deve ser de debate franco com o intuito de demonstrar as conseqüências das posições e práticas destas concepções. Com relação ao anarquismo revolucionário, a relação deve ser de ação conjunta e ajuda mútua. É necessário que se diga que estamos falando de concepções e não de indivíduos ou organizações específicas. Um indivíduo pode aderir a uma concepção leninista, por exemplo, mas isto não o impede de em determinado contexto histórico mudar de posição. A falta de consciência da existência de determinadas concepções mais radicais faz com que alguns indivíduos façam a adesão a concepções reformistas ou ingênuas. Neste caso, a possibilidade de avançar para concepções mais radicais é mais factível. Entretanto, em alguns indivíduos isto já é mais problemático, pois a estrutura de personalidade de algumas pessoas que ao entrar numa dada organização burocrática vêem nela a maneira necessária, pois isto reflete a sua própria mentalidade burguesa e burocrática. Isto torna mais difícil sua mudança de concepção, pois reflete seus valores, sentimentos, enfim, o conjunto de sua mentalidade. A crítica deve ser direcionada às concepções e não a indivíduos considerados isoladamente. É claro que determinados indivíduos de organizações burocráticas, principalmente seus chefes, dificilmente mudarão de concepção. Neste caso, o combate deve ser franco e direto. 

Encerra-se o manifesto com a seção 5, “A sociedade autogerida”. Nesta última parte, Nildo Viana faz uma belíssima análise utópica. A utopia, no sentido em que Ernst Bloch no seu livro O princípio Esperança emprega o termo, trata-se de uma visualização da tendência, manifestando uma consciência antecipadora. Utopia, nestes temos, não é considerada como sendo uma imagem ilusória de um lugar que não existe. Esta é uma utopia abstrata. Para Bloch, a utopia deve ser concreta, ou seja, deve ser a visualização do futuro (consciência antecipadora), mas considerando os processos de tendência. Trata-se na verdade do rompimento com o saber meramente empírico; com esta cisão, a esperança entra como categoria analítica da realidade presente. A história até Marx considerou somente o passado. A partir do materialismo histórico-dialético, o futuro, a utopia concreta entra em cena na leitura do mundo. Deste modo, as antevisões da sociedade do futuro, a sociedade autogerida, não são abstrações sustentadas em castelos de carta, são na verdade a fuga do pensamento para o futuro, a colocação da realidade no front entre o hoje e o amanhã, sendo este a expressão de uma tendência profunda existente nesta sociedade. 

A análise que o autor faz da sociedade autogerida é realizada a partir da observação das experiências revolucionárias existentes até então e nas interpretações teóricas sobre estas experiências. O modo de produção capitalista tem como sua essência a produção de maisvalia. É a partir dela e para sua reprodução que tudo o mais se estrutura: mercado, estado, dinheiro, individualismo, burocracia, burguesia-proletariado etc. A essência do modo de produção comunista, pelo contrário, é a autogestão social. A partir da generalização da autogestão através dos conselhos operários, que na sociedade autogerida deverá mudar de nome, visto que não mais existirão operários, mas somente produtores livremente associados, tudo o mais será re-estruturado. O estado, o mercado, o dinheiro e as classes sociais sucumbirão. Um novo ser humano será construído, uma nova mentalidade, uma nova sociabilidade, uma nova forma de associação entre as pessoas se erguerá. 

O Manifesto Autogestionário é, portanto, uma leitura indispensável para os militantes revolucionários hoje. Quem quiser ter acesso a uma obra de indiscutível radicalidade, de nomeada coerência e inteira correspondência com o processo revolucionário deve ler este manifesto. E, a partir daí, como provoca o autor, cada um deve se sentir tentado a escrever seu próprio manifesto, pois isto é coerente com marxismo revolucionário, libertário. No final das contas, este pequeno plágio é uma das obras mais originais dos últimos tempos.

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:
http://www.espacoacademico.com.br/092/92res_santos.pdf